segunda-feira, novembro 29, 2010

OS MOLUSCOS DE LEONARDO DA VINCI

Baseado em material originalmente publicado pelo autor em 2008.


Autoretrato de Leonardo da Vinci (1512).


Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um daqueles raríssimos indivíduos que podem ser chamados de gênio sem que isso pareça um exagero. Soberbo pintor, desenhista e escultor; também era talentoso poeta e músico (compunha, cantava e tocava vários instrumentos); além de competente filósofo, anatomista, naturalista, engenheiro, mecânico, matemático, físico e arquiteto. Realizou obras tão grandiosas quanto belas, e teve idéias que produziram anotações antecipando um futuro que muitos até então consideravam impossível. Em plena Renascença já havia projetado máquinas hoje consideradas como os protótipos da bicicleta, do helicóptero, do pára-quedas e do tanque de guerra, entre outros.
Muito embora eu me considere um grande admirador do trabalho artístico de Leonardo, sei que não possuo condições de comentar sobre o mesmo. Estou muito mais habilitado para discorrer a respeito das suas anotações e trabalhos científicos; aspecto este praticamente desconhecido de boa parte do público e mesmo de alguns dos seus ditos apreciadores. Além de estudos extremamente detalhados sobre anatomia humana (com o principal intuito de tornar suas obras artísticas o mais realista possível), baseados principalmente na dissecação de cadáveres (algo então ainda mal visto), ele também dedicava grande parte de seu dia à observação minuciosa de animais e plantas e foi pioneiro no estudo dos fósseis. É considerado por muitos historiadores da ciência como o primeiro botânico do Ocidente. Observando o voo de pássaros e borboletas, elaborou engenhocas que, acreditava, um dia pudessem fazer o homem sair do chão (quase 400 anos antes do avião). E se espantava com o fato de alguns médicos da sua época pretenderem curar doenças sem conhecer a fundo a anatomia do corpo humano. Dizem que não era raro que passasse noites em claro, dedicando-se aos seus diversos estudos. Esta verdadeira obsessão pelo trabalho não deixou espaço para relacionamentos amorosos – muitos biógrafos de Da Vinci, inclusive, afirmam que provavelmente ele morreu virgem.
Sim, o título deste meu post é uma clara referência ao livro A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, do paleontólogo de Harvard Stephen Jay Gould (1941-2002), publicado em 2003. Como já se tornara marca registrada em sua obra, nessa coletânea de ensaios sobre história natural Gould analisa, com muito bom humor, vários fatos interessantes envolvendo a evolução das espécies. Quem já leu esse livro sabe que a maioria dos ensaios aborda como a contingência histórica e a fé pessoal de alguns pesquisadores os levou muitas vezes a conclusões equivocadas, ao longo da história da ciência. Dentre os casos relatados, ganha especial destaque o estudo de Leonardo da Vinci sobre conchas marinhas fósseis.
E é justamente esta contingência histórica que pretendo abordar aqui hoje. O texto a seguir, extraído de uma biografia de Leonardo da Vinci elaborada e publicada no Brasil pela editora Martin Claret, retrata o episódio chave desses estudos. Percebe-se no mesmo que Leonardo era de fato um indivíduo muito a frente do seu tempo. E não raras vezes era justamente por isso incompreendido. Não era apenas alguém criativo, perceptivo e brilhante, como também alguém com uma "sede" insaciável de compreender o mundo que o cercava, não se contentando com afirmações do tipo "porque é assim e ponto final". Ele queria compreender como e por que as coisas são como são. Ele não se contentava com respostas prontas ou ausência de respostas. Ele queria ver. Queria entender. Como colocou muito bem o físico Fritjof Capra no seu excelente livro A Ciência de Leonardo da Vinci, há mais de 500 anos atrás ele já fazia ciência de verdade, mais até que muitos contemporâneos seus que se consideravam cientistas.
A maior parte do grande público só conhece o Da Vinci artista. Infelizmente, muitos desconhecem o fato de que a sua forma de analisar o mundo foi de grande contribuição para a evolução da ciência. Por meio dos seus estudos, ele percebeu que o planeta nem sempre foi como é hoje, o que o levou a indagar se as formas de vida também não estariam se alterando desde o seu surgimento na Terra. Pois é, Leonardo da Vinci já havia percebido a evolução biológica, muito embora não tivesse dado a ela este nome na época e nem tenha se empenhado (ou não tivesse tido tempo, tendo em vista suas múltiplas tarefas) em estudá-la mais a fundo.
Talvez tal metodologia não fosse necessariamente uma novidade na época, mas é verdade que os denominados líderes da ciência da Renascença aceitavam-na com ressalvas. Isso ocorria devido ao dogmatismo então presente, que fica evidente na narrativa que se segue.
Moluscos bivalves fósseis (gênero Spondylus) do período cretáceo (100 milhões de anos), encontrados na Itália.


Em Milão, 1490, na corte de Ludovico Sforza, o Mouro, realiza-se o segundo Duelo do Saber; cujos participantes são doutores, deões e professores da Universidade de Pavia.
Por solicitação do próprio duque, Leonardo da Vinci participa do torneio depois de concluir: "Se eu não ceder, talvez fique zangado; falarei sobre o primeiro assunto que me vier á cabeça."
Sobe à cátedra e fala:
-Devo prevenir-vos de antemão que isto me acometeu inesperadamente... foi uma surpresa... Bem, falarei sobre conchas marinhas.
-Estou persuadido de que o estudo dos animais e plantas petrificados, que até aqui foi desprezado pelos homens da ciência, constituirá o começo de uma nova ciência da terra, do seu passado e do seu futuro.
-A informação que acabais de nos fornecer - observou o reitor da Universidade de Pavia, Gabriele Pirovano - é deveras curiosa. Mas permitir-me-ei uma observação: não é mais simples explicar a origem dessas pequenas conchas por uma acidental, divertida e inocente brincadeira da natureza; sobre a qual pretendeis edificar uma nova ciência? Não é muito mais simples explicar a sua origem como tem sido feito até agora pelo Dilúvio Universal?
-Sim, sim, o Dilúvio! - observou Leonardo - Sei que atribuem isso ao Dilúvio. Só que essa explicação não se mantém de pé... Julgai por vós mesmos: o nível da água durante o Dilúvio, de acordo com aquele que o mediu, foi de dez côvados acima das montanhas mais altas. Conseqüentemente, as conchas levadas pelas ondas tempestuosas, deveriam ter caído no cimo, inevitavelmente no cimo, mas não nos lados, nem ao pé das montanhas, e muito menos dentro de cavernas subterrâneas. Além disso, teriam caído em desordem, ao capricho das ondas, mas não, como sempre, no mesmo nível; nem em camadas sobrepostas, como são encontradas. Basta que observeis - e isso é realmente curioso - que os animais que vivem em colônias, tais como os moluscos, as cibas e as ostras, permanecem unidos, como deveriam, ao passo que os de hábitos solitários, ficam à parte, tal como podemos ver ainda hoje nas praias. Tenho freqüentemente observado a disposição das conchas petrificadas na Toscana, Lombardia e Piemonte. Mas se disserdes que não são levadas para lá pela maré, mas que subiram por si próprias, pouco a pouco, com a água, acompanhando a elevação dela, ainda assim essa vossa objeção é facilmente refutável, pois o marisco é um animal tão lento como o caramujo, ou até mais. Não nada, apenas se arrasta sobre a areia e as pedras pelo movimento das suas válvulas, e a maior distância que pode percorrer durante um dia inteiro é de três ou quatro varas. Como, pois, se tiverdes a bondade de explicar-me, Messer Gabriele, podeis conceber que, durante os quarenta dias que o dilúvio durou, segundo o testemunho de Moisés, pode ter-se arrastado esse molusco duzentos e cinqüenta milhas, que é a distância a separar Monferrato das praias do Adriático? Somente os que, desprezando a experiência e a observação, julgam a natureza pelos livros, de acordo com os conceitos dos mercadores de palavras, bem como os que jamais tiveram a curiosidade de olhar com os seus próprios olhos as coisas de que falam, ousarão fazer tal asserção!
Depois de um silêncio constrangedor, finalmente o astrólogo* da corte, Messer Ambrogio da Rosate, propôs, citando Plínio, uma outra solução: as petrificações que teriam somente a aparência de animais marinhos, tinham sido deformadas, na profundeza da terra, pela ação mágica das estrelas.
-Mas então, Messer Ambrogio - retorquiu Leonardo - como explicais o fato de que a influência das mesmas estrelas, no mesmo lugar tenha criados animais não apenas de diferentes espécies, como também, de diferentes idades? Eu próprio descobri que, mediante secções transversais feitas em conchas, bem como em chifres de bois e carneiros e troncos de árvores decepados, é possível determinar com exatidão não somente os seus anos de vida, mas até mesmo os meses. Como explicaríeis o fato de se encontrarem algumas delas inteiras, outras quebradas, outras ainda, cheias de areia, lodo, pinças de caranguejos, ossos e dentes de peixes, e de grandes cascalhos, semelhantes aos que se encontram nas praias, formados de pequenas pedras arredondadas pelas ondas? E as delicadas marcas de folhas nos penhascos das mais altas montanhas? E as algas marinhas presas às conchas, ambas petrificadas, congeladas num único bloco? De onde vem tudo isso? Da influência das estrelas? Mas então, se raciocinarmos desse modo, suponho que não encontrareis em toda a natureza um único fenômeno que não possa ser explicado pela influência mágica das estrelas e, nesse caso, todas as ciências são inúteis, com exceção da astrologia...
O velho doutor em escolástica pediu a palavra e, quando lha concederam, observou que o assunto estava sendo tratado de maneira imprópria, pois apenas uma de duas coisas era possível: ou o problema dos animais das escavações pertencia ao conhecimento inferior, "mecânico", alheio á metafísica, caso em que nada havia a dizer-se do mesmo, já que não havia combinado discutir ali assuntos não relacionados com a filosofia; ou então o problema dizia respeito ao conhecimento verdadeiro e superior, a dialética, e nesse caso, deveria ser discutido de acordo com as leis da dialética, elevando os conceitos á pura contemplação mental.
-Sei de tudo isso - observou Leonardo da Vinci - Também eu pensei muito sobre esse assunto. Só que tudo isso não é como afirmais... Penso que não há alto conhecimento nem conhecimento inferior, mas apenas um único conhecimento, decorrente da experimentação...
-Da experimentação? Ah, então é essa a vossa opinião? Bem, nesse caso, se me permitis, gostaria de perguntar-vos o que seria da metafísica de Aristóteles, Platão, Plotino... de todos os antigos filósofos que falaram sobre Deus, o espírito, as coisas essenciais... Será que tudo isso...
-Sim, nada disso é ciência - retorquiu, calmamente, Leonardo - Reconheço a grandeza dos antigos, mas não neste caso. Na ciência, tomaram o caminho errado. Queriam sondar o que é inacessível ao conhecimento, enquanto desdenhavam o que era acessível. Meteram-se a si próprio e aos outros, durante séculos, num beco sem saída. Porque os homens, quando tratam de assuntos que não podem ser provados, não conseguem nunca chegar a um acordo. Onde não há soluções sensatas, o lugar delas e tomado pela gritaria. Mas aquele que sabe não tem necessidade de gritar. A palavra da verdade é uma só, e quando é pronunciada, devem cessar os gritos dos que disputam. Se porém, os gritos continuam, é porque ainda não há a verdade.
Silenciado, percebeu seu isolamento em meio de toda aquela gente que se considerava servidora da ciência.


* Antes da aceitação cabal das teorias de Johannes Kepler e Isaac Newton, astronomia e astrologia eram estudas juntas, sem distinção, como uma única “ciência”.


Bibliografia recomendada:
CAPRA, Fritjof, A Ciência de Leonardo da Vinci, Cultrix, 2008.
DA VINCI, Leonardo, Anotações de Da Vinci por Ele Mesmo, Madras, 2004.
GOULD, Stephen Jay, A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, Companhia das Letras, 2003.

sexta-feira, novembro 26, 2010

PEGADAS NO YOUTUBE

No último dia 02 de outubro, na Estação Ciência, realizou-se o encontro de 30 Anos de Cosmos, a famosa série do astrônomo e maior divulgador da ciência de todos os tempos, Carl Sagan, organizado pelo site Aumanack e o Grupo de Ficção Científica Alpha.
A convite dos amigos organizadores, participei do evento com muito prazer, ministrando uma palestra intitulada Vida na Terra e Vida Extraterrestre, onde procurei mostrar o que se sabe hoje sobre a evolução da vida no planeta Terra e o que se espera encontrar pelo universo afora. Para quem quiser conferir, segue abaixo um trecho da mesma no Youtube, no qual procuro desmistificar algumas idéias equivocadas que o público não especializado possui sobre evolução biológica, além de mostrar um exemplo de evolução muito bem documentado cientificamente (das baleias e seus parentes). Peço minhas mais sinceras e encarecidas desculpas pelo áudio que, infelizmente, não ficou dos melhores. Se não tivesse sido tão teimoso em usar o microfone, o resulto provavelmente seria melhor. Uma prova de que, mesmo com mais de dez anos atuando como professor, a vida sempre nos reserva alguma surpresas. Felizmente, contudo, eu mesmo não apareço muito, uma vez que não trabalho com a minha imagem (mesmo porque tenho plena consciência de que ela não é das mais apreciáveis) e, portanto, o conteúdo da apresentação é o que realmente importa.
Agradeço ao amigo Renato Azevedo, engenheiro eletrônico e escritor, que foi o responsável pelos vídeos. No seu perfil no Youtube também podem ser conferidos trechos das excelentes palestras de Silvia Reis (Nosso Sistema Solar e os Planetas Fora Dele) e do físico e professor Pierluigi Piazzi (que magistralmente partiu do livro Dragões do Éden de Sagan para dar uma super aula de neuropedagogia... e sem microfone), também realizadas no evento. Àqueles que não foram, apenas posso dizer que vocês perderam. Ficam os vídeos para dar um gostinho do que foi essa celebração da vida e obra desse memorável cientista e ser humano que foi Carl Sagan. Maldades a parte, lembro que comentários são mais que bem vindos.





sábado, novembro 20, 2010

100% MESTIÇOS



Aviso: Se o prezado leitor espera encontrar no texto a seguir alguma comemoração da data de hoje (Dia da Consciência Negra) ou declarações de como os indivíduos de pele mais escura ainda sofrem com o preconceito e a discriminação, aconselho a parar por aqui. Isso você achará em toneladas de outros sites e blogs. Minha abordagem será outra, que vai de encontro à hipocrisia vigente e que, justamente por isso, desagradará a muitos. A escolha é sua.

O Dia da Consciência Negra foi instituído pela Lei 5950/2003 para, mais do que lembrar a escravidão sofrida pelos povos africanos e seus descendentes no Brasil ou homenagear Zumbi dos Palmares, celebrar a contribuição desses mesmos povos na formação da identidade do povo brasileiro. Nada mais justo. Entretanto, alguns grupos, em nome de uma suposta igualdade racial, promovem atualmente em nosso país um novo tipo de racismo, muitas vezes velado e não assumido, baseado numa visão de total imunidade da população considerada negra ou, melhor dizendo sob a onda vigente do politicamente correto, afro-descendente – hoje em dia é um tanto perigoso chamar outro brasileiro de negro, a menos que você também se considere negro. Do jeito que a coisa vai, daqui a pouco até dizeres como “minha preta” (termo carinhoso cunhado pelo homem brasileiro para referir-se à mulher amada) serão considerados ofensas raciais.
Para aqueles que discordam desta minha visão, convido inicialmente para um exercício de imaginação dos mais simples. Acredito que todos conhecem a famosa legenda 100% NEGRO, presente em muitas camisetas e outros itens da vestimenta do brasileiro. Penso também que todos devem conhecer a revista Raça. Independente do quão estranho me parece cidadãos de pele mais clara que a minha ostentando a citada declaração numa camiseta e se autointitulando “negão”, pergunto-lhes qual seria a sua reação ao observarem um cidadão brasileiro de pele clara com uma camiseta com os dizeres: 100% BRANCO? E qual seria sua reação se surgisse hoje no mercado editorial uma revista de título Raça ou similar, onde só figurassem indivíduos de pele clara e que só abordasse a influencia dos povos europeus em nosso país? Reflitam bem sobre as suas respostas para que possamos continuar.
Se o leitor considerou ao menos por um momento que tais exemplos seriam formas de racismo, então chegamos ao ponto principal deste post. E inevitavelmente lanço a pergunta totalmente previsível, porém fatídica: por que 100% BRANCO é racismo e 100% NEGRO não é? Será que aqueles que pensaram desta maneira conseguiriam me responder? A grande verdade é que vivemos uma política racial de dois pesos e duas medidas, onde qualquer ato dirigido aos ditos afro-descendentes, dentro de uma legislação bem intencionada, mas de aplicação duvidosa, tende a caracterizar-se como crime de racismo, sem no entanto encontrarmos correspondência para com os índios, amarelos ou brancos. Em suma, parece que no Brasil o crime de racismo só existe quando a vítima em questão se define como negra. Não vi até hoje uma única notícia nos veículos de comunicação envolvendo um cidadão louro de olhos claros ou de feições asiáticas que foi vítima de racismo por parte de cidadãos de pele mais escura, coisa que todo mundo que viveu alguma parcela da sua vida na periferia sabe que acontece.
Antes que os mais exaltados e irracionais (pleonasmo proposital) possam me acusar de racismo, declaro que sou filho de típicos nordestinos, sendo descendente de europeus, índios e, obviamente, africanos. Basta olhar pra minha cara e a cor da minha pele para notar isso. Tanto que, descobri recentemente através de um amigo e colega de profissão, que na África do Sul eu não seria considerado branco, mas sim “colored”, da mesma forma que sou um típico “hispanic” ou “latino” para os norte-americanos. Mais: meu sobrenome de cristão novo e meu nariz avantajado são fortes indícios de que minha família teria um pé no Oriente Médio. Estaria cometendo uma imbecilidade em escala astronômica se defendesse qualquer forma de discriminação racial.
Pra começo de conversa, e agora falando como biólogo, não existem raças na espécie humana. Ocorre que as diferenças genéticas entre os principais tipos étnicos (africanos, aborígines australianos, índios americanos, asiáticos e caucasianos) são tão pequenas que não são suficientes para dividir o Homo sapiens em raças ou subespécies. Vale aqui ressaltar que há cerca de 40 mil anos nossa espécie sofreu um processo de extinção na Europa e Ásia que dizimou boa parte da sua variabilidade genética. O continente africano não foi afetado e o ser humano ainda não havia chegado às Américas. Como resultado, hoje a maior variabilidade genética na espécie humana encontra-se nos povos africanos nativos, ou seja, nos negros. Há mais diferenças entre os povos da África que entre um chinês e um polonês, por exemplo. Isso só confirma a imbecilidade de qualquer idéia racista ou racialista (termo mais polido, frequentemente utilizado por racistas enrustidos para defender a existência de raças humanas, a despeito de todas as evidencias em contrário).
E se a realidade dos fatos é dura para os racistas de plantão, também o é para os supostos defensores de uma igualdade racial no Brasil. Simplesmente porque aqui mais de 90% da população não é 100% coisa nenhuma. Somos uma grande nação de mestiços. Esse é o motivo pelo qual eu evito utilizar termos como negro ou branco, preferindo apenas pele mais clara ou mais escura, quando o assunto é terras brasilis. Pra mim faz muito mais sentido. Isso é tão doloroso para o neonazista encrenqueiro que sofreu lavagem cerebral quanto para o rapper de pele clara que se acha negro. E constitui a realidade pura e simples. Àqueles que duvidam, sugiro uma breve pesquisa na sua árvore genealógica. Fazendo isso, o cidadão que se acha 100% negro tem quase 100% de chance de se surpreender ao encontrar um ancestral colono europeu, da mesma maneira que um branquelo orgulhoso da sua origem nórdica tem imensas probabilidades de dar de cara com uma tataravó índia. Não se trata de previsão. São fatos. Pura estatística. E não adianta espernear. Enquanto não descobrirem uma maneira de voltarmos no tempo, não há como mudar nossa ancestralidade. Claro que há brancos e negros legítimos em nosso país, assim como amarelos, mas eles são em menor número que os próprios índios. A quase totalidade dos verdadeiros negros do Brasil encontra-se nas comunidades quilombolas. Digo isso, repito, do ponto de vista biológico, que a meu ver é o único válido quando o assunto é a diferença entre as etnias humanas. Um dos pontos positivos da atual política racial brasileira foi ter substituído qualquer critério de definição racial pela simples autodefinição. Tal abordagem já é utilizada pelo IBGE. Assim, quem se considera negro, por exemplo, será registrado no senso nacional como negro e ponto final, sempre deixando claro que o critério é exclusivamente o de autodefinição.
Mas mesmo uma idéia tão boa pode criar problemas quando aliada a procedimentos duvidosos, como os sistemas de cotas raciais adotados em alguns processos seletivos. Ganhou notoriedade nacional anos atrás o caso de dois gêmeos univitelinos que prestaram vestibular numa mesma universidade, que adotara o sistema de cotas para negros e pardos. Um dos irmãos declarou-se branco e o outro pardo, sendo que este último acabou aprovado justamente pelo sistema de cotas - lembrando que me refiro a gêmeos idênticos. E para não deixar dúvidas, os dois irmãos declararam em entrevista que realmente fizeram isso com a intenção de mostrar o quanto tal sistema é falho. Sem dúvida, uma inteligente manobra crítica. Por melhor que seja a sua intenção, qualquer sistema de cotas raciais termina por prejudicar indivíduos bem colocados que tiveram o azar de não se declararem parte das ditas minorias. E ainda chamam isso de igualdade.
Também vale lembrar a Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura e história afro-brasileiras no Ensino Fundamental e Médio. Nenhum problema até aí. Mas e os índios? Por que não uma lei similar obrigando o ensino da cultura indígena? Sem falar que em muitos estados como São Paulo, o Dia da Consciência Negra é feriado, enquanto o Dia do Índio não é feriado em nenhum lugar do país. Se bem que, devido ao número exagerado de dias livres no Brasil, o mais correto seria que nenhuma das datas fosse feriado. No final das contas, dentro de um suposto programa de igualdade racial, os mais prejudicados são os primeiros habitantes do Brasil. Quem acha que não tem nenhuma influencia indígena é porque provavelmente não toma banho todos os dias. Os povos indígenas têm tanta influência na formação da nossa cultura quanto os africanos e, em alguns casos específicos, até mais. E, mais uma vez, chamam isso de igualdade.
A justificativa que alguns “defensores da igualdade racial” dão para tais procedimentos figura entre as maiores bobagens das quais eu já pude tomar conhecimento. Os mesmos afirmam que, em nome dos abusos sofridos no passado, os negros teriam mais direitos que as outras minorias. Resumindo: os negros seriam mais vítimas que as outras vítimas de discriminação racial. Mais uma vez, esqueceram-se dos índios. E engana-se quem acha que tal pensamento seria exclusividade de terras tupiniquins. Uma minoria da comunidade judaica defende que, como os judeus morreram em maior número que outros grupos (literalmente milhões), eles seriam as grandes vítimas do holocausto e por isso teriam mais direitos que os ciganos, homossexuais, deficientes e todos os demais exterminados pelo regime nazista. Também merece menção os mais paranóicos, que defendem que a noção de um Brasil composto em sua imensa maioria por mestiços seria uma conspiração da elite branca (sic!) para impedir que os negros conquistem seus direitos – para esses o próprio conceito de miscigenação parece inexistir. Nota-se que, da mesma forma que não se pode negar o racismo contra aqueles que se definem como negros, também é fato que boa parte desse racismo parte dos próprios. Se o caro leitor acha essas idéias o cúmulo, saiba que ainda há aqueles que defendem que não existe racismo contra os ditos brancos. Uma verdadeira pérola nesse sentido foi proferida esse ano pela ministra da Secretaria Especial de Política e Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Matilde Ribeiro, ao afirmar que um negro que insurge contra um branco fazendo uso da violência em razão da cor da sua pele não caracterizaria racismo. Mais uma vez, dois pesos e duas medidas.
Como se tudo isso não bastasse, a forma como a legislação anti-racismo brasileira se estrutura abre diversas brechas para indivíduos mal intencionados. Basta o sujeito em questão dizer que um possível comentário crítico tem motivação racista para ele virar vítima. Um bom exemplo nesse sentido pôde ser verificado na campanha eleitoral deste ano. Um certo candidato ao Senado (que, diga-se de passagem, possui histórico de violência contra a mulher e, como é típico desses tipos, só agride outros homens pelas costas), sentia-se perfeitamente confortável em atribuir todas as críticas sobre sua candidatura ao racismo e, quando abordado por repórteres e humoristas, além de recebê-los com tremenda arrogância não perdia tempo em jogar a população contra os mesmos.
Uma das características mais encantadoras do povo brasileiro é a sua diversidade. Fazemos parte de um imenso caldeirão multicultural e multiétnico sem equivalentes no planeta. Infelizmente, alguns indivíduos e grupos querem dividir essa nação, cuja maior riqueza nasceu justamente da mistura. Gente que se diz democrática e defensora da liberdade de expressão, mas que não tolera e por vezes até tenta censurar ou punir opiniões divergentes das suas – aposto um pirulito como muitos destes virão me atacar. A atual política racial brasileira não é de igualdade, mas sim de privilégios a um determinado grupo. Igualdade não é nem nunca foi sinônimo de imunidade. Para que a verdadeira igualdade possa existir, nenhum grupo deve ser considerado intocável. Torço para que muito em breve os brasileiros, nas suas mais diversas cores, possam realmente se ver como iguais; algo bem diferente do que está aí. Isso sim seria consciência. Mais que consciência exclusivamente negra, seria consciência humana. Se arrancarmos nossa pele, somos mesmo todos iguais, doa a quem doer. Aliás, a pele está na origem de muitos equívocos do ser humano com relação à sua autoimagem, tanto como espécie, quanto como grupo ou indivíduo. Mas isso já é assunto pra outro post.

Sugestões de leitura:
DIAMOND, Jared M, Armas, Germes e Aço, Record, 2001.
KAMEL, Ali, Não Somos Racistas, Nova Fronteira, 2006.
NARLOCH, Leandro, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Leya Brasil, 2009.

sexta-feira, novembro 19, 2010

PREDADOR OU CARNICEIRO?

Reconstituição moderna de um Tyrannosaurus rex diante da sua próxima refeição: um hadrossauro.


Já dura mais de 90 anos um debate envolvendo o mais célebre dos dinossauros e um dos maiores carnívoros que já habitou este planeta: o Tyrannosaurus rex. Ocorre que existem duas correntes de paleontólogos que defendem concepções bem diferentes do comportamento desse animal. Há aqueles que tentam provar que ele foi um predador ativo; enquanto outro grupo (este com um número bem menor de adeptos) está certo de que ele foi apenas um necrófago, se alimentando exclusivamente, ou quase, de animais mortos. Nos últimos dias tal discussão voltou à midia com a descoberta feita por uma equipe de paleontólogos americanos e canadenses, liderada pelo pesquisador da Universidade Yale, Nick Longrich, apontando que o T. rex também teria hábitos canibais.
Antes de qualquer conclusão, contudo, é preciso que os paleobiólogos entrem num acordo sobre o que seria um carniceiro autêntico ou um predador autêntico. Muitos predadores podem devorar animais mortos ocasionalmente. E muitos animais tidos como carniceiros típicos, como os abutres, podem vir a matar movidos pela fome se estiverem diante de uma presa consideravelmente indefesa e frágil. Tal consenso ainda parece distante, o que só serve para complicar a discussão. Alguns zoólogos sugerem como solução para esse impasse a comparação entre as porcentagens de presas vivas e cadáveres ingeridos pela espécie em questão. Uma proposta válida, mas ainda em andamento. Há ainda os que consideram perda de tempo essa separação entre supostos predadores verdadeiros e necrófagos. De qualquer maneira, o bom e velho T. rex foi e ainda é responsável por uma das mais interessantes seqüências de argumentações e contra-argumentações da história da paleontologia e da ciência como um todo.
Quando o primeiro fóssil de um tiranossauro foi descoberto, em 1903 na América do Norte, a espécie foi logo considerada um feroz predador. Afinal, dentes enormes, pontiagudos e serrilhados; aliados às garras afiadas só podiam pertencer a um matador. Entretanto, assim como é extremamente difícil estabelecer o comportamento de um animal apenas pelo seu esqueleto, garras afiadas e grandes presas nem sempre são indicativos de comportamento 100% predatório. Basta olharmos para os ursos de hoje em dia: dotados de longos caninos e garras; mas que obtém apenas 10 a 15 % de sua alimentação abatendo outros animais, em sua maioria pequenos. A única exceção é o totalmente carnívoro urso polar (Ursus maritimus) que, por razões óbvias inerentes ao seu habitat, e capaz de abater até caribus, bois almiscarados jovens e pequenas baleias.
A idéia de que o T. rex não seria um predador, mas sim um gigantesco carniceiro, começou quando o paleontólogo canadense Lawrence Lambe, em 1917, passou a considerar o animal pesado demais para grandes deslocamentos ou movimentos mais ágeis. Além disso, ele inferiu que os dentes do T. rex , assim como de seus parentes menores como o Albertosaurus, não eram tão desgastados quanto se podia esperar de um caçador ativo. Os partidários do T. rex predador argumentavam que, mesmo não sendo um bicho tão rápido isso não o impediria de atacar de tocaia. De fato, muitos dos predadores atuais mais eficientes, como os felinos, atacam de tocaia por não serem capazes de correr por longas distâncias. Mesmo o veloz guepardo (Acinonyx jubatus) executa apenas um breve arranque em curta distância, chegando a ficar literalmente de língua de fora depois de terminada a corrida, tendo ou não abatido sua presa. Até duas décadas atrás ambas as opiniões não contavam com muitas evidências a seu favor. A maior parte das hipóteses era constituída por meras suposições, muitas vezes sem qualquer embasamento.
De um modo geral, os defensores do T. rex necrófago argumentam que, além do seu enorme peso, os longos dentes do animal não resistiriam a mordidas mais fortes. Há também aqueles que levam em consideração o tamanho reduzido dos braços nos representantes da família dos tiranossaurídeos como um empecilho à caça, uma vez que claramente não teriam muita serventia para segurar a presa, ao contrário do que ocorre com dinossauros carnívoros mais leves e ágeis como os alossaurídeos e os ceratossaurídeos. Muitos destes pesquisadores também citam o enorme tamanho da região do cérebro que seria responsável pelo sentido do olfato, bem como as igualmente grandes cavidades olfativas no crânio do T. rex, que só perdem proporcionalmente em tamanho para as do urubu de cabeça vermelha (Cathartes aura), o vertebrado de olfato mais aguçado em todo o planeta, capaz de farejar carne a quilômetros de distância ou enterrada a mais de um metro de profundidade. Para estes cientistas, tamanho desenvolvimento do olfato num carnívoro que apresentava os outros sentidos igualmente funcionais constituiria evidência de hábitos carniceiros.
Em 2003, os pesquisadores John Hutchinson e Mariano Garcia, da Universidade de Stanford, publicaram um trabalho onde constatariam que o Tyrannosaurus rex seria um animal incapaz de correr. Utilizando um programa de computador, compararam os movimentos do dinossauro carnívoro com o de uma galinha do mesmo tamanho, chegando à conclusão de que este seria extremamente lento.
Robert T. Bakker, paleontólogo do Museu Glenrock, em Wyoming, e famoso por ter sido o principal responsável pela reformulação da imagem dos dinossauros como animais ágeis, espertos e endotérmicos (também chamados de animais de "sangue quente", que mantém a temperatura do corpo constante e independente do ambiente externo, como as aves e os mamíferos) que teve início com o seu célebre livro "Dinosaur Heresies" (1986); classificou o experimento de Hutchinson e Garcia como "ridículo" e "amador". "É óbvio que uma galinha deste tamanho não conseguiria andar", ele comentou "Aliás, ela mal suportaria o próprio peso. E quem disse que um T. rex se parece com uma galinha?". Bakker tem razão em suas afirmações, uma vez que os conceitos da biofísica mostram que animais que aumentam de tamanho sem alterarem sua estrutura básica, especialmente dos membros, acabam desenvolvendo sérios problemas de locomoção. Membros em forma de coluna, mais grossos, constituem um pré-requisito para animais muito grandes conseguirem suportar o próprio peso e se mover em terra. Isso ocorre porque à medida que um objeto qualquer cresce em tamanho, sua superfície aumenta a razão do quadrado, enquanto sua massa aumenta a razão cúbica. Ou seja, o volume sempre aumenta em proporção maior que o comprimento. E, no caso específico dos animais, a força de sustentação cai pela metade na mesma proporção, tornando o corpo do espécime mais pesado para o próprio. Chamamos isso da regra do quadrado e do cubo. Por isso os animais terrestres muito pesados, como elefantes e grandes dinossauros apresentam uma anatomia geral muito parecida - corpo em forma de barril e membros colunares. Pela mesma razão, gigantes humanóides bípedes só são mesmo possíveis no nosso planeta dentro da ficção científica. Se um humanóide crescesse tanto, teria que virar quadrúpede ou ao menos um bípede horizontal (postura dos dinossauros bípedes) e desenvolver membros mais fortes para conseguir sair do lugar. Com base nisso, uma galinha do tamanho de um T. rex acabaria se parecendo muito pouco com uma galinha e muito mais com um T. rex, o que termina por colocar em xeque o experimento de Hutchinson e Garcia. Isso não é uma questão de opinião, mas sim biomecânica pura e simples.
A partir da década de 1990, os defensores de um T. rex predador pareceram deter argumentos em série. Baseando-se em dados biomecânicos, muitos paleontólogos como Gregory M. Erickson da Universidade da Flórida e Kenneth Carpenter do Museu de História Natural de Denver, concluíram que o T. rex na verdade possuía uma mordida robusta e muitos dos dentes perdidos por indivíduos da espécie apresentavam grande desgaste, provavelmente resultado de muitas mordidas, talvez ataques. Per Christiansen, da Universidade de Copenhague, demonstrou num estudo sobre o comprimento e a musculatura das pernas do T. rex, que este deveria alcançar uma velocidade de 40 km/h em plena corrida. Ou seja, mais rápido que qualquer outro animal de porte similar em seu habitat. Contudo, ficam-se devendo estimativas sobre agilidade e resistência; outras características essenciais a um predador.
Em outra ocasião, Carpenter juntamente com o paleontólogo Michael Smith, que na época trabalhava no Museu das Rochosas (EUA), estimaram que os braços "fraquinhos" do T. rex poderiam erguer um peso de até 180kg. A idéia corrente desde a década de 1990 é que os braços serviriam para ajudar o animal a levantar-se após o descanso, o que se encaixa perfeitamente no experimento de Carpenter e Smith. Segundo Bakker, a própria anatomia do T. rex dispensaria o uso dos braços durante o ataque, já que as mandíbulas podiam ser escancaradas num ângulo de cerca de 80 graus e o pescoço robusto unido a um tórax compacto eram demasiadamente fortes para permitir movimentos vigorosos com a grande cabeça em forma de marreta. Bakker explica que braços maiores tirariam o equilíbrio do animal, que possuía uma longa cauda como contrapeso. Este conjunto de características é exclusivo dos tiranossaurídeos.
Quanto à potência da sua mordida, experimentos recentes, realizados por uma equipe liderada por Longrich demonstraram que, ao contrário do que pensavam alguns partidários de um T. rex carniceiro, ela não só seria poderosa, como também o principal estrago que causava era por esmagamento. Alguns dinossauros carnívoros, inclusive os de grande porte, apresentam dentição especializada em cortar (caso do Spinosaurus) ou em arrancar grandes nacos de carne da vítima numa única mordida (caso do Acrocanthosaurus), matando-a por hemorragia. Esses experimentos revelaram que a mordida do T. rex era do tipo “quebra ossos”, efetuando simultaneamente dano por perfuração e trauma. Entretanto, lembremos que embora essa descoberta reforce um possível comportamento predatório, tal característica também seria de grande valia para um comedor de carniça, capaz de quebrar grandes ossos e romper a carne dura em estado de decomposição. Isso abre caminho para uma terceira via de argumentação, que veremos a seguir.
Outro fator que, segundo alguns paleontólogos, aponta para um comportamento predatório, é a maior incidência de vestígios de possíveis ataques do T. rex a hadrossauros (herbívoros bípedes, também chamados “dinossauros bicos-de-pato”), como o Edmontosaurus; em contraste com um número bem menor de ataques ao bem armado Triceratops e quase total ausência de marcas de mordidas similares nos blindados e espinhosos anquilossauros. Paralelamente, o estudo de coprólitos (fezes fósseis) de T. rex tem mostrado uma maior quantidade de ossos de hadrossauros ingeridos por esses animais. Talvez os fósseis sejam enganosos neste caso, o que sempre requer cautela. Mas segundo Carpenter, o registro desse habitat é rico o suficiente para permitir este tipo de conclusão. Segundo ele, se o T. rex fosse realmente um carniceiro, as marcas de mordidas seriam uniformes em todos os tipos de herbívoros daquela época. Bakker reforça, afirmando que tal comportamento é um indício claro de predação, já que os predadores não se arriscam com presas perigosas, caso haja outras mais fáceis de matar.
Em meio a este debate dicotômico, há paleontólogos que defendem uma terceira argumentação, a meu ver, diga-se de passagem, mais coerente: a de que o Tyrannosaurus rex seria um grande carnívoro oportunista, como um leão ou uma hiena, caçando e comendo cadáveres indistintamente, dependendo da oferta ambiente. De fato, muitas das conclusões vistas anteriormente convergem para esse cenário. Esclareço àqueles que por ventura se surpreenderam com o fato de eu citar leões e hienas como predadores equivalentes. Sabe-se hoje que as duas espécies ocupam o mesmo nicho ecológico, sendo inclusive concorrentes diretos; razão pela qual grandes leões machos matam hienas sempre que podem sem, no entanto, devora-las. Da mesma forma, grupos de hienas costumam atacar leões solitários ou desgarrados do bando. Trata-se de uma competição ferrenha por território e alimento. Vistas durante séculos como meras devoradoras dos despojos dos “reis”, as hienas são na verdade caçadoras formidáveis; com olfato apuradíssimo, capazes de enxergar no escuro e donas da mordida mais forte entre os mamíferos predadores. Muito embora não figurem entre os corredores mais velozes (alcançam no máximo 60 km/h, o que já é bem mais que qualquer corredor humano), elas conseguem manter uma marcha constante por vários quilômetros, alcançando invariavelmente a maioria das suas presas. Ocorre que tais fatos só foram possíveis de se verificar com o advento das filmagens e fotografias noturnas. Como tanto hienas quanto leões executam a maior parte das suas caçadas na calada da noite, durante esse período é que se observa a realidade dos seus hábitos alimentares. A imagem imortalizada de um pequeno grupo de leões devorando um herbívoro recém abatido e cercado por um grupo maior e impaciente de hienas pode ser muitas vezes enganosa; já que em muitos desses casos as hienas é que o abateram e os leões, se impondo pela força, o tomaram para si. Em suma, o leão é tão carniceiro quanto a hiena e esta, por sua vez, é tão caçadora quanto o leão. E se o grande felino de juba é o rei da savana, a feroz matriarca de uma matilha de hienas é certamente a sua rainha.
Além de novas descobertas, muitos achados antigos do T. rex e seus parentes têm sido revistos pelos especialistas nos últimos anos. Para se compreender o comportamento de um animal que se extinguiu milhões de anos antes do aparecimento da ciência, é necessário muito mais que estudar a sua anatomia. É preciso ater para detalhes, como marcas de ferimentos e desgaste nos dentes. É preciso também tentar reconstituir o ambiente onde ele teria vivido. E também estudar as outras espécies que conviveram com ele. Não é uma tarefa fácil e com certeza muitas perguntas surgirão. E algumas delas jamais terão resposta. Contudo, é preciso lembrar que os seres vivos não vivem isoladamente; as espécies interagem. E só compreendendo esta interação será possível saber algo sobre o comportamento de um animal pré-histórico. Desta maneira, talvez um dia se descubra do que e como o Tyrannosaurus rex se alimentava.


quarta-feira, novembro 10, 2010

SOBRE O CRIACIONISMO

Conforme prometi num post anterior, venho hoje definir para aqueles ainda não familiarizados com o tema, o que seria o criacionismo. Considero isso tão importante quanto explicar evolução, uma vez que constitui um hábito entre os criacionistas tentar conquistar adeptos para as suas idéias entre os menos esclarecidos. É fato que o esclarecimento torna-nos menos manipuláveis. Já ouvi (e li) grandes equívocos nesse sentido, incluindo gente que acreditava possível ser criacionista e ao mesmo tempo aceitar a Teoria da Evolução. Isso seria tão absurdo quanto ser capitalista e comunista, ou judeu e nazista, ao mesmo tempo. E hoje pretendo mostrar por que.
Denomina-se criacionismo a crença que se opõe a Teoria da Evolução, defendendo que todos os seres vivos  (incluindo o homem) foram criados de uma vez por um ato divino e que a evolução biológica não ocorre. O criacionismo nega completamente a idade da Terra estabelecida pela ciência, existindo mesmo correntes defendendo que a mesma tenha apenas 7.000 anos. Antes de continuar, peço ao leitor que atente para as imagens representadas abaixo (respectivamente, uma charge e uma ilustração de esquemas metodológicos), que já ilustraram diversos sites e blogs de ciência. Clique nas mesmas para vê-las ampliadas.









Além de configurar humor dos mais inteligentes, ambas as imagens são bastante esclarecedoras por si só. Conforme o leitor pode notar, o alicerce do criacionismo consiste em negar veementemente a evolução biológica, em detrimento de todas as evidências em favor da mesma. Também se nota pela comparação entre os dois “métodos” que a negação de tais evidências por vezes chega às raias do absurdo, como se tal comportamento pudesse fazer com que estas deixassem de existir. Isso é real, acredite prezado leitor. Se um criacionista apresenta dez argumentos que ele pensa serem verdadeiros e estes são derrubados por indivíduos que conhecem evolução, ele logo arruma um décimo primeiro argumento, quando este é derrubado logo trata de arrumar um décimo segundo, e assim sucessivamente, num processo sem fim.
O leitor também pode concluir que o criacionismo nada tem de científico, pois em geral sequer tenta parecer que faz uso da metodologia científica (ver meus textos Ciência e Trabalho Científico e Os Métodos Científicos). Ao contrário da ciência, o criacionismo é repleto de certezas e não apresenta uma única questão para a qual já não haja uma resposta pronta. Isso não seria nenhum problema se estivesse restrito ao âmbito da fé. O problema, conforme já mostrado, é que o criacionismo visa desacreditar uma teoria científica e, por vezes, a própria ciência como um todo.
Recentemente, surgiu uma alternativa supostamente científica à teoria darwiniana denominada “Design Inteligente” (DI ou ID no original inglês) e baseada principalmente no livro A Caixa Preta de Darwin, do bioquímico Michael Behe. Trata-se, no entanto, de apenas uma roupagem moderna para o criacionismo. Apesar de se negarem criacionistas e de evitar o uso de termos como “Deus”, “fé” e “divindade”, o que os adeptos do DI fazem nada tem de científico, resumindo-se a procurar evidências (ou, mais frequentemente, distorcê-las) com o único propósito de confirmar as certezas que já possuem – acertou em cheio quem pensou que seriam as mesmas do criacionismo “tradicional”. Seu principal argumento consiste em buscar falhas na teoria evolutiva e defender a idéia de que a existência de um universo e formas de vida tão complexos só seria possível assumindo a existência de uma consciência cósmica superior que os teria planejado (nada mais que uma metáfora nova para Deus). Embora afirmem constantemente que a Teoria da Evolução estaria repleta de falhas, estas obviamente nunca são mostradas. Pelo contrário, é muito mais fácil pegar um conceito e distorcê-lo para que este se torne mais facilmente atacável, constituindo assim a célebre Falácia do Espantalho (ver o texto Sobre Falácias). Outra característica do DI é a tentativa de mostrar uma suposta perfeição e harmonia na natureza, como prova da existência do tal designer. Quem já viu um jabuti ou um besouro rola-bosta virado de costas, no inútil desespero de conseguir endireitar-se, sabe que o seu “design” está longe de ser dos mais inteligentes. E isso também vale pra nós, já que nosso olho, como o de todos os outros vertebrados, apresenta um ponto cego. E qual seria a harmonia presente na interação ecológica em que vespas botam seus ovos em lagartas, que sucumbem em lenta agonia, à medida que são devoradas pelas larvas que eclodem e desenvolvem-se em seu corpo? Mais que isso, a própria história do universo nos mostra que muito do que conhecemos surgiu da imperfeição e não de uma suposta harmonia cósmica. Concluindo, embora tente contestar a evolução de um ponto de vista que pareça a princípio objetivo, o DI estabelece uma origem puramente sobrenatural para o mundo natural, descaracterizando assim qualquer propósito científico que pretenda apresentar.
Além da já mencionada Falácia do Espantalho, outros tipos de falácia são recorrentes nos argumentos criacionistas. Inversão do Ônus da Prova (“Prove-me que a evolução ocorre!”), Ad Nauseam e Apelo à Autoridade figuram entre as mais utilizadas. Ad Hominem também é bastante comum, principalmente na Web. Nesse último caso verifica-se o uso freqüente do que a psicologia e alguns caminhos espiritualistas chamam de projetar a sua sombra: o indivíduo projeta no outro os seus defeitos, com o propósito de torná-lo mais depreciável. Um típico comportamento nesse sentido é acusar profissionais da ciência de arrogância e/ou fanatismo. Mas parece que a última moda no meio criacionista é mesmo apelar para as “teorias” conspiratórias, afirmando que a comunidade científica seria um grande complô que os impede de mostra a verdade. Geralmente, essa conspiração é mostrada como atéia, tendo o propósito de desacreditar Deus. Além de caracterizar um enorme preconceito para com os ateus (mostrados como indivíduos totalmente desprovidos de moral, ética e qualquer noção de limites), tal afirmação constitui uma dupla e desavergonhada mentira. Primeiro, porque a ciência não impede ninguém de mostrar suas teorias, desde que, obviamente, as mesmas sejam realmente teorias, obedecendo à metodologia científica. E segundo porque a ciência não possui nenhum propósito relacionado com a figura da divindade, quanto mais combatê-la (ver meu texto Sobre Ciência e Fé). Na verdade, a maior parte da comunidade científica é formada por pessoas não atéias, denominadas teístas (que possuem alguma forma de fé). Assim, percebe-se que a mais pura desonestidade intelectual é ferramenta das mais importantes no “modus operanti” criacionista.
Sendo assim, podemos concluir que é simplesmente impossível ser criacionista e aceitar a evolução biológica, uma vez que o pilar fundamental do criacionismo é a negação desta. Essa confusão ocorre devido ao fato de muitas pessoas confundirem criacionismo com a simples crença em Deus. Como já foi visto, professar qualquer tipo de fé não torna ninguém criacionista, a não ser é claro que essa fé se baseie na negação do fato que os seres vivos evoluem. É perfeitamente possível ser teísta e aceitar a Teoria da Evolução.
O crescimento do criacionismo em países como os Estados Unidos e o Brasil, nos últimos anos, motivou uma forte e organizada reação por parte da comunidade científica e educadores. Como já era de se esperar, os criacionistas distorcem os fatos a seu favor, acusando seus adversários de perseguição – é comum encarnarem o papel de vítima quando se encontram impossibilitados de executarem suas agressões. A verdade é que são remotíssimas as possibilidades deles alcançarem o poder que tanto almejam, a menos que algum desses países se torne uma teocracia neopentecostal – lembremos que outros segmentos cristãos aceitam sem problemas a evolução biológica. E não há (felizmente) possibilidade disso acontecer tão cedo. Entretanto, não podemos esquecer que algumas escolas mantidas por essas igrejas já ensinam o criacionismo em alternativa à Teoria da Evolução, como se fosse ciência. E suas universidades ensaiam o ensino do DI. Particularmente, penso que já passou da hora disso ser considerado crime, pois desta maneira se está ensinando mentiras aos alunos, e pior, sob o disfarce de teoria científica. Faz parte da nossa obrigação, como biólogos e educadores, combatermos essa farsa. E a melhor maneira de iniciar o combate é ensinando ciência de verdade; esclarecendo, eliminando dúvidas e preconceitos, bem como desmistificando idéias equivocadas. Ao bacharel em Ciências Biológicas que não for capaz disso, sugiro rasgar o diploma e procurar outra carreira.
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