A taxonomia (área da
biologia que trata da classificação dos seres vivos) divide as
espécies atuais da classe répteis (Reptilia) em quatro
grupos principais ou ordens: quelônios (tartarugas, jabutis e
cágados), esquamatos (lagartos e serpentes), crocodilianos
(crocodilos, jacarés e gaviais) e rincocéfalos (hoje representados
apenas pelo tuatara da Nova Zelândia). Ao incluirmos as espécies
pré-históricas, os répteis somam nada menos que 21 ordens,
evidenciando que o grupo já foi muito mais diversificado. Os
dinossauros, pterossauros e répteis marinhos (principalmente os
ictiossauros e plesiossauros) são os seus representantes fósseis
mais famosos.
Os crocodilianos sempre
estiveram entre os que mais atraem a atenção do ser humano, num
misto de fascínio e temor. Esses predadores habitam as regiões
tropicais e subtropicais, vivendo geralmente em rios, lagos e
pântanos; sendo que algumas espécies também ocorrem em marinas,
manguezais e até braços de mar. Possuem os maiores e mais complexos
cérebros entre os répteis atuais e são os únicos cujo coração é
completamente dividido em quatro cavidades (duas aurículas e dois
ventrículos), à semelhança dos mamíferos e as aves – embora
diferente desses, a separação entre o sangue venoso e o sangue
arterial durante a circulação ainda não seja completa. São também
os únicos que cuidam dos seus filhotes – há espécies de
serpentes píton que cuidam apenas dos ovos, abandonando-os logo após
a eclosão. Apesar de toda a fama que os precede, nota-se grande
confusão por parte do grande público quando se trata de diferenciar
os representantes dessa ordem. Entre os equívocos mais comuns
figuram a afirmação de que crocodilos e jacarés são a mesma coisa
ou que a diferença entre eles estaria no tamanho (crocodilos seriam
maiores). Conforme explicarei a seguir, os critérios para defini-los
como tais são outros.
Lembrando o que
mencionei nos meus posts “O Que é um Dinossauro?” e “Divididospor um Osso”, dinossauros (superordem Deinosauria),
crocodilianos (Crocodylomorpha), pterossauros (Pterosauria)
e tecodontes (Thecodontia) formam o grande grupo denominado
arcossauros (Archosauria). Os primeiros crocodilianos surgiram
no período Triássico, pouco antes dos primeiros dinossauros, (há
235 milhões de anos), a partir dos tecodontes – evidências
fósseis e anatômicas indicam que os tecodontes seriam os ancestrais
dos demais arcossauros. Mas os tipos atuais (subordem Eusuchia)
só apareceriam no período Cretáceo (há cerca de 85 milhões de
anos). Diferentes das espécies modernas, os primeiros crocodilianos
eram animais completamente terrestres. Ao longo do período Jurássico
desenvolveram diferentes adaptações, desde tipos de hábito anfíbio
como os atuais até espécies totalmente adaptadas à vida marinha.
Aos interessados em maiores detalhes a respeito da evolução e
taxonomia desses animais indico os seguintes links, do excelente site
Palaeos.
Mas quais seriam afinal
as diferenças entre um crocodilo e um jacaré? Primeiramente, cabe
esclarecer que o tamanho não é um critério seguro para esse fim.
Como veremos, há espécies de crocodilos menores que a maioria dos
jacarés. Os crocodilianos atuais são divididos em três tipos
diferentes (ou três famílias, taxonomicamente falando), num total
de 25 espécies.
Crocodilo
de água salgada (Crocodylus porosus).
Os crocodilos (família
Crocodylidae) constituem a maioria das espécies: três nas
Américas e as demais espalhadas pela África, Índia, Sudeste
Asiático e norte da Oceania. A palavra deriva do grego krokodeilos
(kroké = pedra, drilos = verme), inspirado pela visão
desses animais tomando sol sobre rochas e bancos de areia. O tamanho
varia de menos de 2m até 8,5m de comprimento – o crocodilo de água
salgada ou crocodilo de estuário, atualmente o maior réptil do
mundo.
Jacaré
de papo amarelo (Caiman latirostris).
A denominação
brasileira jacaré (do tupi iakaré) e a
norte-americana aligator (provável corrupção fonética para
o inglês de el lagarto, termo um tanto respeitoso por parte
dos primeiros colonizadores espanhóis) são usadas para o mesmo tipo
de animal (família Alligatoridae), que na maior parte do
mundo é conhecido como caiman e como caimão em alguns
países de língua portuguesa. São seis espécies na América do
Sul, uma no sudeste dos Estados Unidos (a única a viver num clima um
pouco mais frio), e uma na China. Alguns mal chegam a um metro de
comprimento, mas o aligator americano (Alligator mississipiensis)
e o jacaré Açu (Melanosuchus niger) são os gigantes da
família, podendo chegar a 6m. A maioria mede entre 2m e 2,5m. Com
exceção das duas espécies maiores, movem-se em terra firme com
maior desenvoltura que os outros crocodilianos e os menores até
escalam troncos caídos.
Gavial
do Ganges (Gavialis gangeticus) macho.
Muita gente desconhece
o terceiro tipo (família Gavialidae), representado por uma
única espécie (alguns autores atualmente preferem incluir uma
segunda espécie, que comentarei a seguir): o gavial do Ganges, que
apesar dos assustadores 7m de comprimento é inofensivo para seres
humanos. Esse animal é facilmente reconhecido pelas mandíbulas
muito longas e estreitas, uma especialização para capturar peixes.
Ocorre na bacia hidrográfica do rio Ganges, na Índia, onde é
considerado sagrado pelo povo hindu. Gavial é a latinização do
nome gharial, inspirado pela protuberância que os machos
apresentam na região das narinas (possível chamariz sexual), que
lembraria uma ghara, tipo de tigela indiana.
Seguem as principais
diferenças entre essas três famílias. Propositalmente exclui
aquelas mais específicas, concentrando-me nas que seriam facilmente
observáveis por qualquer pessoa, uma vez que dizem respeito à
estrutura do crânio e dentição.
Diferenças
anatômicas (crânio e dentição) entre crocodilos, jacarés e
gaviais (de crocodilians.com).
Crocodilos (família
Crocodylidae):
- Cabeça em formato triangular.
- Dentes de tamanhos variados, visíveis tanto na mandíbula superior quanto na mandíbula inferior quando o animal está de boca fechada, lembrando um sorriso.
- Narinas muito próximas.
Jacarés (família
Alligatoridae):
- Cabeça mais curta e mandíbulas mais arredondadas em comparação com os crocodilos.
- Dentes de tamanhos variados, sendo que os grandes dentes da mandíbula inferior se encaixam sob cavidades da mandíbula superior quando o animal fecha a boca, deixando apenas os dentes superiores visíveis.
- Narinas mais afastadas.
Gavial (família
Gavialidae):
- Caixa craniana mais curta em comparação com os demais crocodilianos; mandíbulas extremamente longas e estreitas.
- Cerca de cem dentes de tamanho uniforme, quase todos visíveis quando o animal fecha a boca.
- Narinas muito próximas e muito elevadas, dando à parte anterior das mandíbulas um aspecto arredondado e formando uma protuberância, mais acentuada nos machos.
A estrutura da
mandíbula, bem como o tamanho e a disposição dos dentes estão
diretamente ligados ao tipo de presa. Quase todos os crocodilianos
são predadores generalistas e oportunistas, caçando praticamente
qualquer animal que tenham força para abater e não dispensando nem
carniça. Mandíbulas largas com dentes de tamanhos diferentes
indicam variedade no tamanho e forma das presas. As mais comuns são
peixes, insetos, crustáceos, anfíbios, além de répteis, aves e
mamíferos de pequeno porte (incluindo crocodilianos menores). As
espécies maiores acrescentam à sua dieta tartarugas e também
mamíferos e aves de maior tamanho. Animais terrestres que se
aproximam para beber são arrastados para a água e afogados. Como a
morfologia das mandíbulas torna esses répteis incapazes de
mastigar, as presas pequenas são geralmente engolidas inteiras,
enquanto as maiores são despedaçadas com vigorosos movimentos de
cabeça e giros de corpo. Os músculos que abrem a boca são fracos
(a ponto de um homem poder mantê-la fechada apenas usando ambas as
mãos), mas os que a fecham são incrivelmente fortes, com um impacto
de até 15 toneladas nas espécies maiores (ERICKSON; LAPPIN; VLIET,
2004) - mais que suficiente para impedir a fuga da presa ou decepar
um membro. A grande exceção é o gavial do Ganges, especializado na
captura de peixes e apenas ocasionalmente alimentando-se de restos de
animais mortos, anfíbios e pequenas aves aquáticas. Há ainda duas
espécies de crocodilo, conhecidas como “falsos gaviais”, que
apresentam um focinho mais estreito e dentes com menor diferença de
tamanho em comparação aos outros membros da família. Tal anatomia
denota uma preferência por peixes, além da incapacidade de capturar
animais maiores, o que os torna um tanto próximos nos hábitos
alimentares ao gavial do Ganges, ainda que com uma diversidade um
pouco maior de presas. Adaptação semelhante é encontrada nos
dinossauros da família Spinosauridae (Spinosaurus,
Angaturama, Baryonix). Tudo indica que esses animais
eram predadores ativos, mas suas mandíbulas estreitas constituem
evidência de uma dieta especializada em presas menores. Restos de
peixe, incluindo escamas e dentes, foram encontrados na cavidade
estomacal de um fóssil de Baryonix - alguns paleontólogos
sustentam que essa espécie também seria carniceira. Embora grandes
e fortes, os Spinossaurídeos provavelmente não seriam capazes de
abater as enormes presas de outros dinossauros caçadores gigantes de
mordida mais devastadora, como o Allosaurus ou o Tyrannosaurus
rex (veja meu post “Predador ou Carniceiro?” para maiores
informações sobre a morfologia e possíveis hábitos alimentares do
T. rex).
Gavial/falso
gavial da Malásia (Tomistoma schlegelii).
Recentemente a análise
filogenética do falso gavial da Malásia revelou uma maior
semelhança e, consequentemente, um maior parentesco dessa espécie
com o gavial do Ganges (WILLIS et al., 2007). Ainda que sua
morfologia a aproxime dos crocodilos (PIRAS et al., 2010), alguns
taxonomistas, priorizando as afinidades moleculares, passaram desde
então a considerá-la como um gavial verdadeiro. Alcançando
facilmente os 6m, também não oferece perigo ao homem.
O habito de caçador
oportunista, que “não escolhe” as suas presas, acaba sendo o
grande responsável pelo fato de alguns crocodilianos serem os únicos
predadores que caçam efetivamente seres humanos. Leões, tigres,
onças, hienas, ursos pardos e polares podem atacar pessoas quando
escasseiam as suas presas habituais ou quando ficam impedidos de
fazê-lo por um ferimento, doença ou velhice. Ocorre que esses
crocodilianos não possuem o que se poderia chamar de presas
habituais. Para eles, humanos são presas como qualquer outra. Há
vários episódios documentados pelo mundo, de pessoas devoradas a
amputações, perfazendo uma média de dois milhões de ataques por ano. O maior número de relatos de ataques vem da África,
Sudeste Asiático e Austrália, tendo como principais vítimas, além
dos povos nativos desses locais, os turistas japoneses – conhecidos
por sua imprudência, aproximando-se demais e sem a mínima segurança
por uma boa foto ou filmagem. Para aqueles de curiosidade mais
mórbida, há vários flagrantes em vídeo disponíveis na internet
de turistas nipônicos descuidados que viraram comida de ursos
kodiak, crocodilos de água salgada ou grupos de leões – e é
sempre bom avisar: são cenas muito fortes, totalmente
desaconselháveis para cardíacos e os mais impressionáveis. O
aligator americano também já fez vítimas humanas, assim como o
crocodilo americano (C. acutus) com sua ampla distribuição
geográfica, do sul da Flórida ao Equador. Na Amazônia registram-se
ataques do jacaré Açu, enquanto na Venezuela e na Colômbia há
dois ou três relatos envolvendo o crocodilo de Orinoco (C.
intermedius), cujo comprimento pode chegar a 7m.
A maioria das espécies
de crocodilianos ainda corre sério risco de extinção. Muitas ainda
são caçadas pelo valor comercial da sua pele, mesmo depois da
criação de fazendas de jacarés e crocodilos pelo mundo. As maiores
são alvos frequentes da caça esportiva. Mas o maior inimigo desses
animais é mesmo a degradação dos seus habitats. Alguns como o
gavial do Ganges, vivem em locais onde o desmatamento e a poluição
atingiram níveis alarmantes. Outros como o crocodilo de Orinoco e o
aligátor americano estão confinados a áreas extremamente pequenas.
Faz parte dos deveres daqueles que lidam com o ensino de ciências e
a educação ambiental o esclarecimento aos demais que esses
magníficos répteis, que estão aqui há muito mais tempo que nós,
têm seu lugar na natureza. Você não precisa querer abraçar um
crocodilo ou nadar ao seu lado. Mas ele tem o mesmo direito à Terra
que você. E por isso merece o mínimo respeito.