Já há algum tempo venho preparando um texto sobre a homossexualidade no reino animal. Sim, ao contrário do que os mais desinformados pensam ela não é exclusividade da espécie humana. E o lançamento de A Fantástica Literatura Queer (brilhantemente idealizada e organizada por Rober Pinheiro e minha amiga Cristina Lasaitis), bem como a proximidade da Parada do Orgulho LGBT, me mostrou que nesse ano não haveria momento mais oportuno para postá-lo que agora.
Para desespero dos homofóbicos de plantão, a ciência tem descoberto um número cada vez maior de evidências da homossexualidade em outras espécies animais, além do Homo sapiens. Isso por si só já bastaria para derrubar de uma vez por todas o principal argumento daqueles que procuram justificar a homofobia, principalmente certos segmentos religiosos: a de que a homossexualidade seria "algo contra a natureza". Aliás, tal afirmação constitui justificativa das mais pobres e frágeis; uma vez que feitos como a agricultura, a prevenção de doenças, a correção de defeitos congênitos e a própria fabricação de medicamentos também são atitudes não naturais da espécie humana. O comportamento homofóbico, como toda intolerância baseada no puro preconceito, relaciona-se com uma desesperada procura de uma justificativa para o ódio injustificável. De fato, é muito mais fácil atribuir a origem de preconceitos a entes externos como Deus ou um livro sagrado que assumi-los publicamente. Se reconhecer e se assumir como um indivíduo preconceituoso requer muita coragem.
Apenas no início do século XX alguns pesquisadores pararam de fazer vista grossa para algo que julgavam imoral - sim, sempre houve e ainda há preconceito na ciência, pois cientistas são antes de tudo seres humanos. Em 1999, o zoólogo canadense Bruce Bagemihl listou 1500 espécies de animais onde existe algum comportamento que caracteriza envolvimento sexual e/ou afetivo entre indivíduos do mesmo sexo; sendo em sua maioria (mas não apenas), mamíferos e aves. A lista é enorme: leões, golfinhos, elefantes, rinocerontes, lobos (e sua subespécie bem conhecida de todos nós, o cão doméstico), ratos, quase todas as espécies de pássaros e praticamente todos os primatas, só pra citar alguns exemplos.
Apenas no início do século XX alguns pesquisadores pararam de fazer vista grossa para algo que julgavam imoral - sim, sempre houve e ainda há preconceito na ciência, pois cientistas são antes de tudo seres humanos. Em 1999, o zoólogo canadense Bruce Bagemihl listou 1500 espécies de animais onde existe algum comportamento que caracteriza envolvimento sexual e/ou afetivo entre indivíduos do mesmo sexo; sendo em sua maioria (mas não apenas), mamíferos e aves. A lista é enorme: leões, golfinhos, elefantes, rinocerontes, lobos (e sua subespécie bem conhecida de todos nós, o cão doméstico), ratos, quase todas as espécies de pássaros e praticamente todos os primatas, só pra citar alguns exemplos.
Mas é preciso cautela. Tais descobertas de forma alguma evidenciam a existência de uma possível origem genética para a homossexualidade na espécie humana, como querem alguns. Na natureza a sexualidade é extremamente diversificada e em algumas espécies o comportamento homossexual se apresenta de forma bem diferente do que se observa na nossa espécie. Com base no que já se descobriu, inclusive do ponto de vista evolutivo, chega a ser ingênuo querer estabelecer uma teoria de origem comum para a homossexualidade em todo o reino animal, ou mesmo para todos os mamíferos. Tudo indica que ela apareceu mais de uma vez, de maneiras diferentes e independentes na história da sexualidade das espécies. Ou seja, não foi um acontecimento único e isolado, evoluído linearmente, mas sim vários eventos pontuais, extremamente abrangentes e multifacetados (como a própria sexualidade em si, diga-se de passagem). Sem sombra de dúvida, um tema complexo. Trabalhos multidisciplinares parece ser o caminho para compreender a homossexualidade humana e dos outros animais. Eis um campo de estudo interessante e promissor, onde muitas pistas ainda estão esperando para serem descobertas.
A seguir, apresento dez espécies onde a homossexualidade se manifesta de maneiras bem particulares:
Bonobo (Pan paniscus) - Ao contrário dos seus parentes próximos, os chimpanzés (Pan troglodytes), os bonobos são extremamente pacíficos e pouco territorialistas; muito raramente fazendo uso de agressões físicas, seja entre membros da mesma espécie, seja com outros animais. Além disso, não apresentam o que se poderia chamar de uma hierarquia social. Mas o mais curioso são suas interações sociais: que não são estabelecidas por meio da intimidação ou da violência, como nos chimpanzés, mas sim sob formas bem mais gentis, não raras vezes fazendo uso do contato sexual. Poligâmicos, os bonobos possuem uma sexualidade extremamente variada: heterossexuais, machos com machos, fêmeas com fêmeas (caso da foto acima, o maior número de contados homossexuais registrados na espécie), machos adolescentes montando fêmeas maduras, machos adultos montando fêmeas adolescentes, fêmeas maduras masturbando jovens machos, fêmeas velhas abaixando-se delicadamente quase ao nível do chão para permitirem-se penetradas por filhotes machos. Alguns pesquisadores chegaram a afirmar que não existem bonobos fêmeas heterossexuais, mas apenas bissexuais (que seriam a maioria) ou homossexuais. Essa também é uma das diversas espécies de primatas onde se observou relações homossexuais que culminaram em algo muito semelhante ao orgasmo humano. O bonobo foi a primeira espécie, além do homem, onde se notou que o sexo não se limitava ao propósito da reprodução, incluindo sexo oral tanto nas relações hetero quanto homossexuais. O sexo nessa espécie parece ter uma importância tão ou maior que na espécie humana, uma vez que além do prazer, envolve todo um contexto social.
"Blackbuck” (Antilopa cervicapra) - Esse ruminante asiático muda a sexualidade conforme a idade. Até o presente momento, machos adultos homossexuais são desconhecidos. Mas curiosamente, e por motivo ainda ignorado, todos os machos adolescentes (que possuem a mesma tonalidade castanha das fêmeas) são exclusivamente homossexuais, copulando entre si. Só começam a procurar fêmeas após atingirem a maturidade e adquirirem a característica coloração negra com o ventre branco dos machos adultos, que são solitários a maior parte do ano, formando haréns na época do acasalamento – como na foto acima.
Cisne Trombeteiro (Cygnus buccinator) – O maior pássaro da América do Norte, essa espécie foi equivocadamente eleita como símbolo do amor entre um homem e uma mulher, bem como da fidelidade amorosa. De fato, até algumas igrejas (incluindo a católica romana) chegaram a citar por mais de uma vez o cisne em defesa do casamento tradicional e para condenar o adultério. A grande verdade porém é que o cisne trombeteiro, bem como todas as outras espécies de cisne, não é nenhuma das duas coisas. Estudos em genética nas duas últimas décadas mostraram que, embora essencialmente monogâmicos, muitas vezes as ninhadas de cisnes têm pais biológicos diferentes do parceiro com o qual a fêmea divide os cuidados do ninho. E para sepultar de uma vez a fama desses animais como marido/esposa fiéis, geralmente esses pais biológicos são machos “comprometidos” com outras fêmeas. Também já se observou diversos contatos homossexuais em indivíduos de ambos os sexos nessas “puladas de cerca”, ainda que as mesmas sejam bem mais comuns nos indivíduos jovens, que não realizaram sua primeira postura. Cabe aqui adicionar que em virtualmente todas as espécies de pássaros ocorrem contatos homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em ejaculação.
Hiena Malhada (Crocuta crocuta) - Uma das características da família dos hienídeos é a presença nas fêmeas (geralmente pouco maiores que os machos) de uma bolsa escrotal oca. E o clitóris delas é enorme e alongado, muito semelhante a um pênis. Além disso, fora da época da reprodução, sua abertura vaginal permanece fechada e impenetrável. Devido a essas características bem peculiares, até meados do século XIX pensava-se que as hienas (família Hienidae) fossem hermafroditas – outra característica vista como demoníaca por alguns segmentos religiosos judaico-cristãos. Realmente, em muitos casos, só é possível distinguir o sexo de uma hiena apalpando-lhe a bolsa escrotal. Os bandos de hienas malhadas são sociedades matriarcais, lideradas por uma fêmea dominante. Há décadas registra-se um número expressivo de falsas cópulas entre fêmeas adultas e mesmo jovens. Todo ano, grupos de 2 a 4 fêmeas (muitas vezes com filhotes) se separam do resto bando e assim ficam, por períodos que variam de meses até o resto da vida, compartilhando comida e executando falsas cópulas com relativa frequência.
Urso Pardo (Ursos arctus) – Mais precisamente, as ursas pardas. Há uma farta documentação a respeito de fêmeas nessa espécie que poderiam ser classificadas, segundo critérios humanos extremamente restritivos, como bissexuais. Ocorre que os ursos pardos (o maior predador terrestre do Hemisfério Norte) são animais solitários, sendo que os machos procuram as fêmeas apenas na época do acasalamento. O casal nem chega a conviver junto por muito tempo, ficando a fêmea como a única responsável pela criação dos filhotes – que por sinal têm os machos adultos da própria espécie como seus principais predadores. Não são raros os casos de duas fêmeas que pariram na mesma época acabarem se unindo para cuidarem juntas das suas ninhadas. O que poderia ser apenas uma “parceria de amigas com necessidades em comum” revela-se algo mais se atentarmos para o fato que em 90% desses casos elas trocam carícias e até executam falsa cópulas com contatos vaginais, não raras vezes resultando em orgasmos.
Borboletas Nynphalídeas (diversas espécies) – Essa família de borboletas inclui várias das espécies possuidoras de grandes ocelos nas asas (desenhos que lembram olhos, cujas funções vão de afugentar predadores a chamarem a atenção das fêmeas), geralmente mais desenvolvidas nos machos. Em 2010, Antonia Monteiro e Kathleen L. Prudic da Universidade de Yale realizaram um interessante estudo sobre a sexualidade desse tipo de borboleta, no qual há uma documentação expressiva sobre homossexualidade, especialmente entre fêmeas. O referido estudo foi posteriormente publicado na revista Science. As autoras estudaram o comportamento sexual de borboletas criadas a 27ºC e a 17ºC. Notou-se que nas temperaturas mais frias, as lagartas fêmeas davam origem a adultas que adotavam um comportamento mais ativo no que diz respeito à reprodução, literalmente cortejando os machos. Em algumas espécies, até os ocelos das asas, tornaram-se maiores e mais vivos. Já as lagartas de temperaturas mais elevadas originam fêmeas mais passivas, que apenas esperam o cortejo dos machos. O resultado é que as fêmeas mais ativas acabam sendo aquelas com maior sucesso reprodutivo. Além disso, é justamente nelas que se observa interações homossexuais. A grande questão é: será que as duas características possuem alguma ligação?
Argali ou Bighorn (Ovis ammon) – Esse majestoso carneiro selvagem vive numa região montanhosa que vai do Oriente Médio a Mongólia, passando pelo Himalaia. Os machos são geralmente solitários quase o ano todo, formando grandes haréns na época do acasalamento. As fêmeas vivem em pequenos grupos. Como ocorre geralmente nas espécies poligâmicas, o dimorfismo sexual é bem acentuado, sendo os machos bem maiores e com grandes cornos curvados em forma de meia lua, que usam em disputas territoriais ou por fêmeas – dos quais os maiores pares chegam a pesar 200 kg. Nessa espécie, alguns machos adultos ou jovens podem formar pequenos grupos (como o da foto acima), onde são bastante comuns contatos sexuais, incluindo lambidas na região genital resultando em ejaculações. Alguns desses indivíduos passam a vida inteira nesses grupos, nunca procurando fêmeas.
Babuíno Dourado (Papio cinocephalus) – Nessa espécie registraram-se diversos contados homossexuais em ambos os sexos. E assim como nos bonobos (vide acima), já se observou não apenas o autêntico orgasmo, como também que a vocalização das fêmeas no momento da cópula é um indicativo claro de prazer – fêmeas que fazem sexo às escondidas (como as que “traem” o grande macho dominante com outros machos do bando) costumam manter o silencio durante o ato. Hoje já se sabe que essa é uma característica comum a todos os primatas e não exclusiva da espécie humana. Embora bem mais agressivos e combativos que os bonobos, os babuínos também possuem um comportamento sexual com contexto social: a montada. Entre os babuínos há o hábito de ser virar o traseiro para os indivíduos dominantes, em sinal de submissão. E é comum entre os machos adultos a penetração anal, montando outro macho hierarquicamente inferior. Como resultado, o líder monta todos os indivíduos adultos do bando. Embora mais raros há líderes, apelidados por alguns primatólogos de "machos Nero", que também se permitem montar por outros machos hierarquicamente graduados.
Baleia Cinzenta (Eschrichtius robustus) - Na época da reprodução, grupos de machos dessa espécie de cetáceo avançam nos mares árticos em busca das fêmeas. Na verdade, nem todos. Durante o trajeto alguns machos esfregam seus corpos em outros machos, quase sempre tendo ereções. Essa troca de carícias geralmente culmina com dois ou três machos cercando um terceiro, tentando copular com este (normalmente sem sucesso) e finalizando com ejaculações. Observou-se que a maioria destes machos que participam desta brincadeira sexual não procuram fêmeas para se acasalarem.
Mosca das Frutas (Drosophila melanogaster) - Num estudo realizado em 2005, a equipe liderada pelo neurobiologista australiano Barry Dickson, do Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia Austríaca de Ciências, em Viena; conseguiu alterar o comportamento sexual dessa espécie (uma das mais utilizadas em experimentos científicos) apenas mexendo no seu código genético. Para isso alteraram o gene conhecido como "fruitless" ou "fru", considerado a central para o acasalamento, envolvida no ritual de corte dos machos. Notou-se então que as fêmeas alteradas começaram a procurar outras fêmeas e até a tentar copular com elas; enquanto os machos alterados passaram a se comportar como fêmeas em relação aos outros machos. Esse experimento esquentou ainda mais o debate sobre uma possível origem genética da homossexualidade. Contudo, cabe esclarecer que nos vertebrados, ao contrário do que ocorre nos insetos, não são os cromossomos que determinam a sexualidade. Na verdade ela estaria muito mais relacionada com os hormônios. Ainda assim, muitos estudiosos defendem que essa influencia seria apenas parcial – prova disso é que lésbicas não apresentam necessariamente altos níveis de testosterona, por exemplo.