Participantes da Slut Walk São Paulo com seus cartazes (por Tchello).
Na tarde do último sábado realizou-se na Avenida Paulista a Slut Walk (“Marcha das Vadias”) de São Paulo, versão de um evento que teve origem no Canadá, quando universitárias da cidade de Toronto, ao reclamarem do alto índice de estupros, receberam como resposta do xerife local a afirmação de que suas vestimentas inapropriadas e provocativas teriam motivado tais crimes. A Marcha surgiu como reação a esse pensamento machista; procurando alertar a sociedade para a verdadeira cultura do estupro na qual vivemos. Todo aquele que já atentou para o assunto certamente notou as inúmeras vezes em que se procurou criminalizar as mulheres vítimas de violência sexual. “Ela provocou” ou “Ela estava usando roupa curta, quase nua”, são algumas das “justificativas” mais comuns, pra não falar em outras bem mais específicas, como “Ela era uma vagabunda mesmo, merecia” (acreditem, eu já ouvi isso).
Hoje retomo o blog deixando a evolução biológica de lado (ao menos parcialmente) e abordando esse tema, tão espinhoso quanto urgente. Por motivos de força maior, não pude comparecer ao evento, o que já me desqualifica para comentá-lo. Contudo, na qualidade de indivíduo do sexo masculino que gosta muito de mulher (e não apenas de sexo com mulher), acredito poder comentar as motivações do mesmo, bem como o que pude acompanhar depois do seu término. Antes da Marcha li vários textos sobre o tema, alguns excelentes. Mas todos escritos por mulheres. Nada mais justo, pois ninguém melhor que o discriminado para discorrer sobre a discriminação sofrida. Mas confesso que senti falta de uma opinião masculina sobre o assunto. Àqueles que por ventura tiverem curiosidade sobre a minha visão das mulheres, sugiro a leitura do meu post do Dia Internacional da Mulher deste ano.
O que salta aos olhos ao percorrermos os sites de notícias de sábado pra cá é o número nada desprezível de gente que não entendeu absolutamente nada da “Marca das Vadias”. Teve até quem achasse tratar de uma passeata de profissionais do sexo desocupadas. A essas criaturas, só me resta a minha sempre viva vergonha alheia. Infelizmente, esses tipos sempre existirão. Trata-se de um sintoma clássico dos garotos digitais do século XXI, como diz aquela música do Bad Religion: um bando de “especialistas” que leem superficialmente sobre tudo, não entendem realmente nada e sempre ávidos pra vomitar suas ridículas opiniões baseadas em orelhadas e Wikipedia. E há ainda aqueles que claramente nada tem a dizer e querem apenas aparecer – curiosamente, muitas vezes ocultos sob o anonimato.
Mas o que realmente merece atenção é a opinião de gente que entendeu a Marcha e mesmo assim a condena por considerá-la apologia a pornografia, a promiscuidade e a “pouca vergonha” – o que para alguns significa a liberdade feminina. Ou que acha que as mulheres brasileiras deveriam preocupar-se com “assuntos mais importantes”. Mesmo não sendo mulher, me arrisco em perguntar o que seria mais importante pra uma delas que ser dona do seu próprio corpo, o seu templo, numa sociedade em que homens ditam regras a respeito do que e como ela deve fazer com ele. Aqueles que pensam assim geralmente são os mesmos que acham que a Lei Maria da Penha trás privilégios às mulheres – como se em algum momento da nossa história elas tenham sido tratadas em condição de igualdade com os homens. Trata-se apenas de mais uma forma de tentar legitimar a violência sexual contra a mulher, expressa desde em brincadeiras aparentemente inocentes (como a já famosa e pra lá de infeliz piada de Rafinha Bastos sobre estupro e mulheres feias e uma comunidade virtual que pede a “legalização do estupro”) até o argumento (pífio, pra não dizer patético) no qual uma mulher que não quer ser atacada, então que se vista “decentemente” e “se dê ao respeito”. Como homem, gostaria de me aprofundar nessa vergonhosa opção de bater insistentemente nessa tecla, defendida por alguns dos meus pares (e até mesmo algumas mulheres) da espécie.
Comecemos pelo mais evidente: a questão do vestuário. Então uma mulher, para evitar ser estuprada, não pode usar saias curtas ou decotes, sob o risco de “provocar”? Engraçado que ninguém diz o mesmo a respeito dos homens de perna de fora e torso nu – salvo se ele for afeminado, situação em que ele vira a “bichona louca”, o viado que (mais uma vez) “não se dá ao respeito”. Homem com as pernas de fora é elogiado. Mulher de perna de fora vira vadia. Sabemos que na nossa sociedade não precisa muito para uma mulher virar vadia. Basta, por exemplo, ter ficado com mais de um garoto na adolescência; ou ter mais experiências sexuais que seu futuro marido. Quando o assunto é homem x mulher, a cultura de “dois pesos e duas medidas” fala alto, ou melhor, grita. E já que é pra cutucar a ferida, vamos ao extremo dos extremos: os maníacos estupradores, aqueles cujo comportamento é decorrente de uma doença mental. Para esses indivíduos, pouco ou nada importa a roupa que a sua vítima está usando. Muitas vezes, sequer ela precisa ser atraente. Basta ser mulher. O que realmente preocupa é o fato dessa desculpa dos trajes femininos partir justamente daquela parcela da população considerada mentalmente sã. Isso ficou evidente no episódio protagonizado pela universitária e agora pseudocelebridade Geisy Arruda – ou alguém realmente acredita que a machaiada urrante do lado de fora da sala de aula queria apenas agredi-la verbalmente? A polícia não estava lá por brincadeira. Sim, digo mais uma vez, vivemos uma cultura do estupro. Só não vê quem não quer.
Sobre a questão do “se dar ao respeito”, acredito seriamente que isso tem muito mais a ver com comportamento que com visual. Um comportamento vulgar faz qualquer indumentária perder toda a primazia de atenção. E cá entre nós, todos já topamos com mulheres vestidas dos pés à cabeça muito menos respeitáveis (em todos os sentidos) que aquelas que usam saia acima dos joelhos em dias de calor. Sem falar que, com exceção óbvia dos extremos, a questão da vestimenta é muito subjetiva dentro da nossa cultura – comentar agora a (des)importância das roupas em outras culturas só complicaria a situação, além de desviar o foco do post. Uma calça que para alguém é muito justa e chamativa pode parecer discreta para outro.
Agora, o que me arranca gargalhadas, a ponto de doer o meu diafragma são os argumentos daquela minoria que defende o estupro como algo natural e, portanto, aceitável. Sim, eles existem. E mais que ativar a vergonha alheia, são tipos dignos de pena. Esclarecendo, é sabido que o estupro não é exclusividade da espécie humana, ocorrendo em diversas outras espécies entre mamíferos (como gorilas e leões), aves (especialmente as diversas espécies de pato) e até em alguns caranguejos. “E daí?”, perguntarão alguns leitores, com toda razão. Daí que esses indivíduos utilizam tais fatos para justificar a violência contra a mulher. Tal analogia é por demais deficiente uma vez que, ainda que
nos dois casos esteja presente a atração física, os motivos centrais da
violência sexual no Homo sapiens e
noutros animais são bem distintos: enquanto nas outras espécies a intenção é
darwinianamente reprodutiva, na nossa ela é claramente de domínio sobre o outro - geralmente, sobre a outra. E para aqueles que ainda acreditam que nossos ancestrais dos tempos das cavernas conseguiam apaziguar seus desejos carnais apenas na base dos sopapos e puxões de cabelo, sugiro abandonar os filmes, desenhos animados e livros de quarenta anos atrás e dar uma lidinha em textos mais recentes sobre a sexualidade humana. Diferente da cultura que hoje domina o planeta, as primeiras sociedades humanas eram igualitárias quanto aos gêneros – e não, não havia o domínio do feminino sobre o masculino, como querem alguns neopagãos analfabetos em história (para maiores detalhes nesse sentido, sugiro meu texto Sobre Fé, Divindades e Epiderme). Descobertas feitas nas últimas duas décadas mostram que, ao contrário do que diz o senso comum, o sexo não consensual nas primeiras populações da nossa espécie além de ser a exceção, em muitas delas gerava punições. Nota-se que a violência sexual só é tolerada em culturas onde a mulher ocupa uma posição de inferioridade em relação ao homem. E a nossa é um exemplo bem palpável.
Apenas não concordei com ao fato da Marcha terminar na figura do “humorista” Rafinha Bastos. A meu ver, isso acabou por descaracterizar o seu propósito original que, como vimos, é muito mais abrangente. Aproveito para informar que, ao manifestar meu repudio a respeito da referida piada do mesmo, alguns me acusaram de defender o politicamente correto. Quem me conhece sabe que de politicamente correto não tenho nada, muito pelo contrário. O problema é que hoje ser politicamente incorreto virou “cool”, todo mundo quer. Mas como em tudo na vida, a maioria que o tenta consegue apenas ser idiota. E a piada desse cidadão (que como afirmei em outra oportunidade, não me representa como nerd, muito menos como homem) não foi politicamente incorreta, mas apenas idiota. É considerado humor politicamente incorreto aquele que mexe em temas considerados perigosos, mas que estão repletos de fontes para diversos tipos de anedotas e similares. Uma piada inteligente (ainda que pesada) envolvendo racismo ou homofobia, antes de mais nada, ilustra a imbecilidade que constitui tais comportamentos – os saudosos Trapalhões e TV Pirata que o digam. Agora, alguém sem histórico psiquiátrico consegue ver algo de engraçado no tema estupro? Ao menos essa infeliz piada teve sua importância como documento histórico: ilustra muito bem a mentalidade atual do brasileiro.
É preciso esclarecer que não cabe aqui qualquer forma de generalização. Há mulheres dos mais diversos tipos de caráter, assim como ocorre com os homens. Sim, algumas não se dão ao respeito. Sim, há aquelas que não valem uma nota falsa de um real. Mas isso não é de forma alguma justificativa para agredi-las sexualmente. Se você, caro espécime Homo sapiens do sexo masculino pensa que sim, já começou errado. Da mesma forma que espancar um homossexual não o torna mais hétero, estuprar uma mulher de caráter duvidoso não o torna mais viril. Definitivamente, não é essa a questão.
Vendo as fotos da Slut Walk de São Paulo, o cartaz que mais me chamou a atenção foi um onde se lia “Respeite as mulheres, se for homem”. Simplesmente perfeito. As frases mais simples e diretas são mesmo as melhores. O homem brasileiro é ensinado desde cedo a ver a mulher como mero objeto de prazer e que gostar delas seria sinônimo de fraqueza. Macho que é macho não trata bem mulher – quem faz isso é otário, é assim que aprendemos. E nossa sociedade está cheia de machos. Mas nem todo aquele que nasce macho se torna homem. As mulheres que valem a pena teem toda a razão de reclamar: homem está mesmo em falta.
Obs: O título deste post faz referência à letra de “Mãe é Mãe”, composição de Cláudio Besserman Vianna (1962-2006), mais conhecido como Bussunda. Maiores detalhes a respeito da mesma podem ser vistos na sua biografia, escrita por Guilherme Fiuza.
14 comentários:
Devidamente divulgado. ;-)
Grande Atila, preciso como sempre! Grande abraço!
Gostei muito do texto! E acho importantíssimo que homens se coloquem e percebam que tudo isso diz respeito a eles tb! :)
Muito bom. Postei na minha página do fb. Neste sábado é a Marcha das Vadias de Recife. Estarei lá. Um abraço
"O que realmente preocupa é o fato dessa desculpa dos trajes femininos partir justamente daquela parcela da população considerada mentalmente sã."
Sempre bom encontrar alguém lúcido no mundo.
E como também gosto dos temas de evolução, tema mor do blog, já vou te seguir.
Obrigado Mila.
Saiba que esse texto é também uma homenagem às mulheres que admiro, incluindo você. Beijão.
Fico feliz que tenha gostado, amigão Renato. Grande abraço pra você também.
Obrigado, Natália. Seja bem vinda.
Obrigado pela visita, Sueli.
Um abraço pra você também e ótima Marcha aí no Recife.
Muito obrigado, Eneida. Fico feliz que tenha gostado. Seja bem vinda.
Adorei querido.
PArabéns!
Já compartilhei ;)
Abraços
Obrigado, Nath.
Fique a vontade, :-)
Devidamente compartilhado e divulgado.
Ótimo texto.
Bom saber que há homens que pensam com seus cérebros, e não só com seus pênis e umbigos.
Não é pq uma mulher usa vestido curto q sai por aí atrás de homem e tb nãoé por vestir roupas mais comportadas q a mulher é uma "santa". Existem os 2 lados q devem ser observados. Como disse sua amiga Roberta, mas em outras palavras: Q bom ter homens dignos como vc q contempla a beleza feminina não só pelos nossos decotes mas principalmente, por aquilo q pensamos. Obrigada por isso. Um beijo bem carinhoso amigo.
Postar um comentário