quinta-feira, junho 20, 2013

SOBRE JACARÉS, CROCODILOS E GAVIAIS

A taxonomia (área da biologia que trata da classificação dos seres vivos) divide as espécies atuais da classe répteis (Reptilia) em quatro grupos principais ou ordens: quelônios (tartarugas, jabutis e cágados), esquamatos (lagartos e serpentes), crocodilianos (crocodilos, jacarés e gaviais) e rincocéfalos (hoje representados apenas pelo tuatara da Nova Zelândia). Ao incluirmos as espécies pré-históricas, os répteis somam nada menos que 21 ordens, evidenciando que o grupo já foi muito mais diversificado. Os dinossauros, pterossauros e répteis marinhos (principalmente os ictiossauros e plesiossauros) são os seus representantes fósseis mais famosos.
Os crocodilianos sempre estiveram entre os que mais atraem a atenção do ser humano, num misto de fascínio e temor. Esses predadores habitam as regiões tropicais e subtropicais, vivendo geralmente em rios, lagos e pântanos; sendo que algumas espécies também ocorrem em marinas, manguezais e até braços de mar. Possuem os maiores e mais complexos cérebros entre os répteis atuais e são os únicos cujo coração é completamente dividido em quatro cavidades (duas aurículas e dois ventrículos), à semelhança dos mamíferos e as aves – embora diferente desses, a separação entre o sangue venoso e o sangue arterial durante a circulação ainda não seja completa. São também os únicos que cuidam dos seus filhotes – há espécies de serpentes píton que cuidam apenas dos ovos, abandonando-os logo após a eclosão. Apesar de toda a fama que os precede, nota-se grande confusão por parte do grande público quando se trata de diferenciar os representantes dessa ordem. Entre os equívocos mais comuns figuram a afirmação de que crocodilos e jacarés são a mesma coisa ou que a diferença entre eles estaria no tamanho (crocodilos seriam maiores). Conforme explicarei a seguir, os critérios para defini-los como tais são outros.
Lembrando o que mencionei nos meus posts “O Que é um Dinossauro?” e “Divididospor um Osso”, dinossauros (superordem Deinosauria), crocodilianos (Crocodylomorpha), pterossauros (Pterosauria) e tecodontes (Thecodontia) formam o grande grupo denominado arcossauros (Archosauria). Os primeiros crocodilianos surgiram no período Triássico, pouco antes dos primeiros dinossauros, (há 235 milhões de anos), a partir dos tecodontes – evidências fósseis e anatômicas indicam que os tecodontes seriam os ancestrais dos demais arcossauros. Mas os tipos atuais (subordem Eusuchia) só apareceriam no período Cretáceo (há cerca de 85 milhões de anos). Diferentes das espécies modernas, os primeiros crocodilianos eram animais completamente terrestres. Ao longo do período Jurássico desenvolveram diferentes adaptações, desde tipos de hábito anfíbio como os atuais até espécies totalmente adaptadas à vida marinha. Aos interessados em maiores detalhes a respeito da evolução e taxonomia desses animais indico os seguintes links, do excelente site Palaeos.




Mas quais seriam afinal as diferenças entre um crocodilo e um jacaré? Primeiramente, cabe esclarecer que o tamanho não é um critério seguro para esse fim. Como veremos, há espécies de crocodilos menores que a maioria dos jacarés. Os crocodilianos atuais são divididos em três tipos diferentes (ou três famílias, taxonomicamente falando), num total de 25 espécies. 

Crocodilo de água salgada (Crocodylus porosus).

Os crocodilos (família Crocodylidae) constituem a maioria das espécies: três nas Américas e as demais espalhadas pela África, Índia, Sudeste Asiático e norte da Oceania. A palavra deriva do grego krokodeilos (kroké = pedra, drilos = verme), inspirado pela visão desses animais tomando sol sobre rochas e bancos de areia. O tamanho varia de menos de 2m até 8,5m de comprimento – o crocodilo de água salgada ou crocodilo de estuário, atualmente o maior réptil do mundo. 

Jacaré de papo amarelo (Caiman latirostris).

A denominação brasileira jacaré (do tupi iakaré) e a norte-americana aligator (provável corrupção fonética para o inglês de el lagarto, termo um tanto respeitoso por parte dos primeiros colonizadores espanhóis) são usadas para o mesmo tipo de animal (família Alligatoridae), que na maior parte do mundo é conhecido como caiman e como caimão em alguns países de língua portuguesa. São seis espécies na América do Sul, uma no sudeste dos Estados Unidos (a única a viver num clima um pouco mais frio), e uma na China. Alguns mal chegam a um metro de comprimento, mas o aligator americano (Alligator mississipiensis) e o jacaré Açu (Melanosuchus niger) são os gigantes da família, podendo chegar a 6m. A maioria mede entre 2m e 2,5m. Com exceção das duas espécies maiores, movem-se em terra firme com maior desenvoltura que os outros crocodilianos e os menores até escalam troncos caídos.


Gavial do Ganges (Gavialis gangeticus) macho.

Muita gente desconhece o terceiro tipo (família Gavialidae), representado por uma única espécie (alguns autores atualmente preferem incluir uma segunda espécie, que comentarei a seguir): o gavial do Ganges, que apesar dos assustadores 7m de comprimento é inofensivo para seres humanos. Esse animal é facilmente reconhecido pelas mandíbulas muito longas e estreitas, uma especialização para capturar peixes. Ocorre na bacia hidrográfica do rio Ganges, na Índia, onde é considerado sagrado pelo povo hindu. Gavial é a latinização do nome gharial, inspirado pela protuberância que os machos apresentam na região das narinas (possível chamariz sexual), que lembraria uma ghara, tipo de tigela indiana.
Seguem as principais diferenças entre essas três famílias. Propositalmente exclui aquelas mais específicas, concentrando-me nas que seriam facilmente observáveis por qualquer pessoa, uma vez que dizem respeito à estrutura do crânio e dentição. 


Diferenças anatômicas (crânio e dentição) entre crocodilos, jacarés e gaviais (de crocodilians.com).

Crocodilos (família Crocodylidae):
  • Cabeça em formato triangular.
  • Dentes de tamanhos variados, visíveis tanto na mandíbula superior quanto na mandíbula inferior quando o animal está de boca fechada, lembrando um sorriso.
  • Narinas muito próximas.

Jacarés (família Alligatoridae):
  • Cabeça mais curta e mandíbulas mais arredondadas em comparação com os crocodilos.
  • Dentes de tamanhos variados, sendo que os grandes dentes da mandíbula inferior se encaixam sob cavidades da mandíbula superior quando o animal fecha a boca, deixando apenas os dentes superiores visíveis.
  • Narinas mais afastadas.

Gavial (família Gavialidae):
  • Caixa craniana mais curta em comparação com os demais crocodilianos; mandíbulas extremamente longas e estreitas.
  • Cerca de cem dentes de tamanho uniforme, quase todos visíveis quando o animal fecha a boca.
  • Narinas muito próximas e muito elevadas, dando à parte anterior das mandíbulas um aspecto arredondado e formando uma protuberância, mais acentuada nos machos.

A estrutura da mandíbula, bem como o tamanho e a disposição dos dentes estão diretamente ligados ao tipo de presa. Quase todos os crocodilianos são predadores generalistas e oportunistas, caçando praticamente qualquer animal que tenham força para abater e não dispensando nem carniça. Mandíbulas largas com dentes de tamanhos diferentes indicam variedade no tamanho e forma das presas. As mais comuns são peixes, insetos, crustáceos, anfíbios, além de répteis, aves e mamíferos de pequeno porte (incluindo crocodilianos menores). As espécies maiores acrescentam à sua dieta tartarugas e também mamíferos e aves de maior tamanho. Animais terrestres que se aproximam para beber são arrastados para a água e afogados. Como a morfologia das mandíbulas torna esses répteis incapazes de mastigar, as presas pequenas são geralmente engolidas inteiras, enquanto as maiores são despedaçadas com vigorosos movimentos de cabeça e giros de corpo. Os músculos que abrem a boca são fracos (a ponto de um homem poder mantê-la fechada apenas usando ambas as mãos), mas os que a fecham são incrivelmente fortes, com um impacto de até 15 toneladas nas espécies maiores (ERICKSON; LAPPIN; VLIET, 2004) - mais que suficiente para impedir a fuga da presa ou decepar um membro. A grande exceção é o gavial do Ganges, especializado na captura de peixes e apenas ocasionalmente alimentando-se de restos de animais mortos, anfíbios e pequenas aves aquáticas. Há ainda duas espécies de crocodilo, conhecidas como “falsos gaviais”, que apresentam um focinho mais estreito e dentes com menor diferença de tamanho em comparação aos outros membros da família. Tal anatomia denota uma preferência por peixes, além da incapacidade de capturar animais maiores, o que os torna um tanto próximos nos hábitos alimentares ao gavial do Ganges, ainda que com uma diversidade um pouco maior de presas. Adaptação semelhante é encontrada nos dinossauros da família Spinosauridae (Spinosaurus, Angaturama, Baryonix). Tudo indica que esses animais eram predadores ativos, mas suas mandíbulas estreitas constituem evidência de uma dieta especializada em presas menores. Restos de peixe, incluindo escamas e dentes, foram encontrados na cavidade estomacal de um fóssil de Baryonix - alguns paleontólogos sustentam que essa espécie também seria carniceira. Embora grandes e fortes, os Spinossaurídeos provavelmente não seriam capazes de abater as enormes presas de outros dinossauros caçadores gigantes de mordida mais devastadora, como o Allosaurus ou o Tyrannosaurus rex (veja meu post “Predador ou Carniceiro?” para maiores informações sobre a morfologia e possíveis hábitos alimentares do T. rex).

Gavial/falso gavial da Malásia (Tomistoma schlegelii).

Recentemente a análise filogenética do falso gavial da Malásia revelou uma maior semelhança e, consequentemente, um maior parentesco dessa espécie com o gavial do Ganges (WILLIS et al., 2007). Ainda que sua morfologia a aproxime dos crocodilos (PIRAS et al., 2010), alguns taxonomistas, priorizando as afinidades moleculares, passaram desde então a considerá-la como um gavial verdadeiro. Alcançando facilmente os 6m, também não oferece perigo ao homem.
O habito de caçador oportunista, que “não escolhe” as suas presas, acaba sendo o grande responsável pelo fato de alguns crocodilianos serem os únicos predadores que caçam efetivamente seres humanos. Leões, tigres, onças, hienas, ursos pardos e polares podem atacar pessoas quando escasseiam as suas presas habituais ou quando ficam impedidos de fazê-lo por um ferimento, doença ou velhice. Ocorre que esses crocodilianos não possuem o que se poderia chamar de presas habituais. Para eles, humanos são presas como qualquer outra. Há vários episódios documentados pelo mundo, de pessoas devoradas a amputações, perfazendo uma média de dois milhões de ataques por ano. O maior número de relatos de ataques vem da África, Sudeste Asiático e Austrália, tendo como principais vítimas, além dos povos nativos desses locais, os turistas japoneses – conhecidos por sua imprudência, aproximando-se demais e sem a mínima segurança por uma boa foto ou filmagem. Para aqueles de curiosidade mais mórbida, há vários flagrantes em vídeo disponíveis na internet de turistas nipônicos descuidados que viraram comida de ursos kodiak, crocodilos de água salgada ou grupos de leões – e é sempre bom avisar: são cenas muito fortes, totalmente desaconselháveis para cardíacos e os mais impressionáveis. O aligator americano também já fez vítimas humanas, assim como o crocodilo americano (C. acutus) com sua ampla distribuição geográfica, do sul da Flórida ao Equador. Na Amazônia registram-se ataques do jacaré Açu, enquanto na Venezuela e na Colômbia há dois ou três relatos envolvendo o crocodilo de Orinoco (C. intermedius), cujo comprimento pode chegar a 7m.
A maioria das espécies de crocodilianos ainda corre sério risco de extinção. Muitas ainda são caçadas pelo valor comercial da sua pele, mesmo depois da criação de fazendas de jacarés e crocodilos pelo mundo. As maiores são alvos frequentes da caça esportiva. Mas o maior inimigo desses animais é mesmo a degradação dos seus habitats. Alguns como o gavial do Ganges, vivem em locais onde o desmatamento e a poluição atingiram níveis alarmantes. Outros como o crocodilo de Orinoco e o aligátor americano estão confinados a áreas extremamente pequenas. Faz parte dos deveres daqueles que lidam com o ensino de ciências e a educação ambiental o esclarecimento aos demais que esses magníficos répteis, que estão aqui há muito mais tempo que nós, têm seu lugar na natureza. Você não precisa querer abraçar um crocodilo ou nadar ao seu lado. Mas ele tem o mesmo direito à Terra que você. E por isso merece o mínimo respeito.


2 comentários:

Felipe Carvalho disse...

Caro Átila, posso reproduzir este seu texto, sobre Jacarés, crocodilos, e gaviais, ou trechos dele, com a devida citação da fonte e do autor, em meu blog?
www.vida-nos-bosques.blogspot.com.br

Atenciosamente,
Felipe Carvalho

Agradeço caso possa me responder por email também: felipebeltrao@hotmail.com

Átila Oliveira disse...

Seja bem vindo, Felipe. E fique à vontade.
Muito interessante o seu blog. Faço questão de ler os textos com mais calma.

Abraço.

BlogBlogs.Com.Br