Um dos equívocos mais célebres da história da paleontologia envolveu duas espécies asiáticas de dinossauros. E demorou mais de setenta anos para ser corrigido. Tudo teve início quando o excêntrico naturalista e caçador de fósseis do Museu Americano de História Natural, Roy Chapman Andrews, partiu com uma autentica caravana rumo ao deserto de Gobi, na Mongólia, em abril de 1922. Reunindo 125 camelos, 2 caminhões, 3 automóveis e uma equipe que incluía dezenas de carregadores nativos e um cinegrafista de Hollywood (contratado especialmente para filmar as "façanhas" de Andrews); o famoso aventureiro ansiava por grandes achados, num local que já começava a ganhar notoriedade pelos impressionantes fósseis já descobertos e descritos.
Andrews era famoso por sua falta de paciência e atitudes precipitadas. Definindo a si mesmo como um "espírito inquieto", por várias vezes ele destruiu preciosos fósseis na pressa de desenterrá-los, na maior parte das ocasiões fazendo uso de dinamite. Não demorou que no meio acadêmico o dano massivo de fósseis em campo recebesse a alcunha de RCA, as iniciais do maior destruidor voluntário de fósseis de todos os tempos.
Andrews era famoso por sua falta de paciência e atitudes precipitadas. Definindo a si mesmo como um "espírito inquieto", por várias vezes ele destruiu preciosos fósseis na pressa de desenterrá-los, na maior parte das ocasiões fazendo uso de dinamite. Não demorou que no meio acadêmico o dano massivo de fósseis em campo recebesse a alcunha de RCA, as iniciais do maior destruidor voluntário de fósseis de todos os tempos.
Durante sua expedição no deserto de Gobi, a equipe de Andrews fez um achado simplesmente extraordinário. Foram encontrados ninhos, cada um contendo grande número de ovos fossilizados. O tamanho dos ovos e as pegadas próximas não deixavam dúvida: eram ninhos de dinossauro. Não foram os primeiros ovos de dinossauro a serem descobertos (já se conhecia os ninhos de Maiasaurus da América do Norte), mas até então ninguém os havia encontrado em tamanha quantidade. Ainda hoje, é o maior conjunto de fósseis de ninhos e ovos já descrito. A equipe encontrou próximo aos ninhos esqueletos de um dinossauro herbívoro e quadrúpede de porte médio (com cerca de 2m de comprimento). Um ceratopsídeo (grupo que compreende os dinossauros herbívoros quadrúpedes e dotados do característico adorno ósseo sobre o pescoço, sendo que a maioria das espécies apresenta chifres, como o Triceratops) basal, desprovido de chifres. O tal animal foi batizado com o nome de Protoceratops (algo como "o primeiro com chifres", pois como até então era o único ceratopsídeo deste tipo, pensou tratar-se do precursor da família) e Andrews logo o considerou como sendo a espécie que havia nidificado ali. Sobre um ninho soterrado, foi encontrado o fóssil de outro animal; um pequeno dinossauro bípede e carnívoro, com um bico muito semelhante ao de uma ave e apenas um par de pontiagudos dentes na maxila superior. Seu aspecto lembrava vagamente o de uma avestruz. Como estava sobre o ninho, Andrews logo conclui que o mesmo estava se alimentando dos ovos e deu-lhe o nome de Oviraptor ("ladrão de ovos").
Um dos ninhos encontrados pela expedição de 1922 (American Museum of Natural History).
Reconstituição de 1980 de fêmea de Protoceratops andrewsi "guardando" o ninho.
Reconstituição do Oviraptor philoceratops (American Museum of Natural History).
Em 1993, uma nova expedição ao deserto de Gobi, desta vez liderada pelos paleontólogos Michael Novacek e Mark Norell, mostraria que Andrews havia se enganado. A equipe encontrou outros ninhos. Num deles identificaram uma verdadeira jóia: um então ovo de Protoceratops contendo um embrião. Mas o exame do mesmo revelou, para surpresa de todos, um embrião de Oviraptor. O pequeno carnívoro encontrado no deserto não era ladrão de ovos como se pensava, mas sim uma mãe dedicada que morreu protegendo o seu ninho, provavelmente durante uma tempestade. Contudo, seguindo as leis da prioridade de nomenclatura utilizada na paleontologia, o nome Oviraptor permanece até hoje.
Reconstituição moderna de uma fêmea de Oviraptor alimentando a ninhada (National Geographic Society).
A partir deste importante episódio, podemos chegar a três conclusões. A primeira e mais óbvia, é a de que o temperamento precipitado de Roy Chapman Andrews o fez chegar a uma conclusão sem sustentar-se em provas suficientes, o que só com muita sorte pode dar certo. E a confirmação da hipótese não a legitimaria, pois a mesma se baseou num mero palpite, sem evidências, não sendo portanto um argumento científico. Contudo, é inegável a atitude pioneira e a determinação de Andrews como aspectos positivos desse tipo de comportamento. Infelizmente, esse espírito aventureiro não é muito comum entre os acadêmicos. E ainda mais raros são os que o exercem de forma equilibrada. É bem mais fácil seguir a linha Steve Irwin: bancar o palhaço sensacionalista, tornando-se estrela incomodando e irritando animais que estão quietos no seu canto. Como segunda conclusão, embora episódios como o de Andrews sejam raros, cientistas muitas vezes incorrem em erros e teorias incompletas. A razão varia bastante. Pode ser desde o fato da descoberta, em se tratando especificamente da paleontologia, de um estranho espécime sem análogos nos dias atuais (ver meu post O Que é Um Dinossauro); até crenças pessoais arraigadas e conceitos que praticamente norteiam um determinado momento histórico (ver meu post Os Moluscos de Leonardo da Vinci). Isso de forma alguma constitui demérito para a ciência. Serve apenas para mostrar o quanto ainda se tem para descobrir sobre a natureza e que cientistas são seres humanos comuns, em detrimentos da aura de quase divindade e sabedoria sobre-humana que muitos leigos cultuam sobre eles – e que alguns cientistas, como humanos que são, não fazem nenhum esforço para desmistificar. Por último, mas não menos importante, episódios como este refletem o desenvolvimento da ciência como um todo. Muitas teorias apresentadas séculos atrás foram alteradas ou mesmo substituídas. Uma teoria que hoje é válida sempre leva, em maior ou menor grau, a interpretação de teorias que a precederam (ver meu post Ciência e Trabalho Científico). As ciências são mutáveis, e se desapontará profundamente quem pretende encontrar nelas repostas para tudo. Não é esse o seu objetivo. Afinal, se os cientistas já tivessem todas as respostas, não teriam por que continuar trabalhando. A essência do pensamento científico reside na descoberta. E todo cientista sabe que ainda há muito pra se descobrir.
Muito provavelmente os paleontólogos do futuro rirão dos equívocos cometidos pelos seus colegas do nosso século. Mas é exatamente assim que as coisas funcionam. Descobertas e mais descobertas confirmarão ou refutarão o que se sabe hoje, peças se encaixando e sendo realocadas, na esperança de compor um quebra-cabeça que não se tem nenhuma certeza se um dia estará completo. Isaac Newton expressou isso muito bem ao afirmar "que só enxergou mais longe porque estava de pé, sobre os ombros de gigantes".