segunda-feira, novembro 29, 2010

OS MOLUSCOS DE LEONARDO DA VINCI

Baseado em material originalmente publicado pelo autor em 2008.


Autoretrato de Leonardo da Vinci (1512).


Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um daqueles raríssimos indivíduos que podem ser chamados de gênio sem que isso pareça um exagero. Soberbo pintor, desenhista e escultor; também era talentoso poeta e músico (compunha, cantava e tocava vários instrumentos); além de competente filósofo, anatomista, naturalista, engenheiro, mecânico, matemático, físico e arquiteto. Realizou obras tão grandiosas quanto belas, e teve idéias que produziram anotações antecipando um futuro que muitos até então consideravam impossível. Em plena Renascença já havia projetado máquinas hoje consideradas como os protótipos da bicicleta, do helicóptero, do pára-quedas e do tanque de guerra, entre outros.
Muito embora eu me considere um grande admirador do trabalho artístico de Leonardo, sei que não possuo condições de comentar sobre o mesmo. Estou muito mais habilitado para discorrer a respeito das suas anotações e trabalhos científicos; aspecto este praticamente desconhecido de boa parte do público e mesmo de alguns dos seus ditos apreciadores. Além de estudos extremamente detalhados sobre anatomia humana (com o principal intuito de tornar suas obras artísticas o mais realista possível), baseados principalmente na dissecação de cadáveres (algo então ainda mal visto), ele também dedicava grande parte de seu dia à observação minuciosa de animais e plantas e foi pioneiro no estudo dos fósseis. É considerado por muitos historiadores da ciência como o primeiro botânico do Ocidente. Observando o voo de pássaros e borboletas, elaborou engenhocas que, acreditava, um dia pudessem fazer o homem sair do chão (quase 400 anos antes do avião). E se espantava com o fato de alguns médicos da sua época pretenderem curar doenças sem conhecer a fundo a anatomia do corpo humano. Dizem que não era raro que passasse noites em claro, dedicando-se aos seus diversos estudos. Esta verdadeira obsessão pelo trabalho não deixou espaço para relacionamentos amorosos – muitos biógrafos de Da Vinci, inclusive, afirmam que provavelmente ele morreu virgem.
Sim, o título deste meu post é uma clara referência ao livro A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, do paleontólogo de Harvard Stephen Jay Gould (1941-2002), publicado em 2003. Como já se tornara marca registrada em sua obra, nessa coletânea de ensaios sobre história natural Gould analisa, com muito bom humor, vários fatos interessantes envolvendo a evolução das espécies. Quem já leu esse livro sabe que a maioria dos ensaios aborda como a contingência histórica e a fé pessoal de alguns pesquisadores os levou muitas vezes a conclusões equivocadas, ao longo da história da ciência. Dentre os casos relatados, ganha especial destaque o estudo de Leonardo da Vinci sobre conchas marinhas fósseis.
E é justamente esta contingência histórica que pretendo abordar aqui hoje. O texto a seguir, extraído de uma biografia de Leonardo da Vinci elaborada e publicada no Brasil pela editora Martin Claret, retrata o episódio chave desses estudos. Percebe-se no mesmo que Leonardo era de fato um indivíduo muito a frente do seu tempo. E não raras vezes era justamente por isso incompreendido. Não era apenas alguém criativo, perceptivo e brilhante, como também alguém com uma "sede" insaciável de compreender o mundo que o cercava, não se contentando com afirmações do tipo "porque é assim e ponto final". Ele queria compreender como e por que as coisas são como são. Ele não se contentava com respostas prontas ou ausência de respostas. Ele queria ver. Queria entender. Como colocou muito bem o físico Fritjof Capra no seu excelente livro A Ciência de Leonardo da Vinci, há mais de 500 anos atrás ele já fazia ciência de verdade, mais até que muitos contemporâneos seus que se consideravam cientistas.
A maior parte do grande público só conhece o Da Vinci artista. Infelizmente, muitos desconhecem o fato de que a sua forma de analisar o mundo foi de grande contribuição para a evolução da ciência. Por meio dos seus estudos, ele percebeu que o planeta nem sempre foi como é hoje, o que o levou a indagar se as formas de vida também não estariam se alterando desde o seu surgimento na Terra. Pois é, Leonardo da Vinci já havia percebido a evolução biológica, muito embora não tivesse dado a ela este nome na época e nem tenha se empenhado (ou não tivesse tido tempo, tendo em vista suas múltiplas tarefas) em estudá-la mais a fundo.
Talvez tal metodologia não fosse necessariamente uma novidade na época, mas é verdade que os denominados líderes da ciência da Renascença aceitavam-na com ressalvas. Isso ocorria devido ao dogmatismo então presente, que fica evidente na narrativa que se segue.
Moluscos bivalves fósseis (gênero Spondylus) do período cretáceo (100 milhões de anos), encontrados na Itália.


Em Milão, 1490, na corte de Ludovico Sforza, o Mouro, realiza-se o segundo Duelo do Saber; cujos participantes são doutores, deões e professores da Universidade de Pavia.
Por solicitação do próprio duque, Leonardo da Vinci participa do torneio depois de concluir: "Se eu não ceder, talvez fique zangado; falarei sobre o primeiro assunto que me vier á cabeça."
Sobe à cátedra e fala:
-Devo prevenir-vos de antemão que isto me acometeu inesperadamente... foi uma surpresa... Bem, falarei sobre conchas marinhas.
-Estou persuadido de que o estudo dos animais e plantas petrificados, que até aqui foi desprezado pelos homens da ciência, constituirá o começo de uma nova ciência da terra, do seu passado e do seu futuro.
-A informação que acabais de nos fornecer - observou o reitor da Universidade de Pavia, Gabriele Pirovano - é deveras curiosa. Mas permitir-me-ei uma observação: não é mais simples explicar a origem dessas pequenas conchas por uma acidental, divertida e inocente brincadeira da natureza; sobre a qual pretendeis edificar uma nova ciência? Não é muito mais simples explicar a sua origem como tem sido feito até agora pelo Dilúvio Universal?
-Sim, sim, o Dilúvio! - observou Leonardo - Sei que atribuem isso ao Dilúvio. Só que essa explicação não se mantém de pé... Julgai por vós mesmos: o nível da água durante o Dilúvio, de acordo com aquele que o mediu, foi de dez côvados acima das montanhas mais altas. Conseqüentemente, as conchas levadas pelas ondas tempestuosas, deveriam ter caído no cimo, inevitavelmente no cimo, mas não nos lados, nem ao pé das montanhas, e muito menos dentro de cavernas subterrâneas. Além disso, teriam caído em desordem, ao capricho das ondas, mas não, como sempre, no mesmo nível; nem em camadas sobrepostas, como são encontradas. Basta que observeis - e isso é realmente curioso - que os animais que vivem em colônias, tais como os moluscos, as cibas e as ostras, permanecem unidos, como deveriam, ao passo que os de hábitos solitários, ficam à parte, tal como podemos ver ainda hoje nas praias. Tenho freqüentemente observado a disposição das conchas petrificadas na Toscana, Lombardia e Piemonte. Mas se disserdes que não são levadas para lá pela maré, mas que subiram por si próprias, pouco a pouco, com a água, acompanhando a elevação dela, ainda assim essa vossa objeção é facilmente refutável, pois o marisco é um animal tão lento como o caramujo, ou até mais. Não nada, apenas se arrasta sobre a areia e as pedras pelo movimento das suas válvulas, e a maior distância que pode percorrer durante um dia inteiro é de três ou quatro varas. Como, pois, se tiverdes a bondade de explicar-me, Messer Gabriele, podeis conceber que, durante os quarenta dias que o dilúvio durou, segundo o testemunho de Moisés, pode ter-se arrastado esse molusco duzentos e cinqüenta milhas, que é a distância a separar Monferrato das praias do Adriático? Somente os que, desprezando a experiência e a observação, julgam a natureza pelos livros, de acordo com os conceitos dos mercadores de palavras, bem como os que jamais tiveram a curiosidade de olhar com os seus próprios olhos as coisas de que falam, ousarão fazer tal asserção!
Depois de um silêncio constrangedor, finalmente o astrólogo* da corte, Messer Ambrogio da Rosate, propôs, citando Plínio, uma outra solução: as petrificações que teriam somente a aparência de animais marinhos, tinham sido deformadas, na profundeza da terra, pela ação mágica das estrelas.
-Mas então, Messer Ambrogio - retorquiu Leonardo - como explicais o fato de que a influência das mesmas estrelas, no mesmo lugar tenha criados animais não apenas de diferentes espécies, como também, de diferentes idades? Eu próprio descobri que, mediante secções transversais feitas em conchas, bem como em chifres de bois e carneiros e troncos de árvores decepados, é possível determinar com exatidão não somente os seus anos de vida, mas até mesmo os meses. Como explicaríeis o fato de se encontrarem algumas delas inteiras, outras quebradas, outras ainda, cheias de areia, lodo, pinças de caranguejos, ossos e dentes de peixes, e de grandes cascalhos, semelhantes aos que se encontram nas praias, formados de pequenas pedras arredondadas pelas ondas? E as delicadas marcas de folhas nos penhascos das mais altas montanhas? E as algas marinhas presas às conchas, ambas petrificadas, congeladas num único bloco? De onde vem tudo isso? Da influência das estrelas? Mas então, se raciocinarmos desse modo, suponho que não encontrareis em toda a natureza um único fenômeno que não possa ser explicado pela influência mágica das estrelas e, nesse caso, todas as ciências são inúteis, com exceção da astrologia...
O velho doutor em escolástica pediu a palavra e, quando lha concederam, observou que o assunto estava sendo tratado de maneira imprópria, pois apenas uma de duas coisas era possível: ou o problema dos animais das escavações pertencia ao conhecimento inferior, "mecânico", alheio á metafísica, caso em que nada havia a dizer-se do mesmo, já que não havia combinado discutir ali assuntos não relacionados com a filosofia; ou então o problema dizia respeito ao conhecimento verdadeiro e superior, a dialética, e nesse caso, deveria ser discutido de acordo com as leis da dialética, elevando os conceitos á pura contemplação mental.
-Sei de tudo isso - observou Leonardo da Vinci - Também eu pensei muito sobre esse assunto. Só que tudo isso não é como afirmais... Penso que não há alto conhecimento nem conhecimento inferior, mas apenas um único conhecimento, decorrente da experimentação...
-Da experimentação? Ah, então é essa a vossa opinião? Bem, nesse caso, se me permitis, gostaria de perguntar-vos o que seria da metafísica de Aristóteles, Platão, Plotino... de todos os antigos filósofos que falaram sobre Deus, o espírito, as coisas essenciais... Será que tudo isso...
-Sim, nada disso é ciência - retorquiu, calmamente, Leonardo - Reconheço a grandeza dos antigos, mas não neste caso. Na ciência, tomaram o caminho errado. Queriam sondar o que é inacessível ao conhecimento, enquanto desdenhavam o que era acessível. Meteram-se a si próprio e aos outros, durante séculos, num beco sem saída. Porque os homens, quando tratam de assuntos que não podem ser provados, não conseguem nunca chegar a um acordo. Onde não há soluções sensatas, o lugar delas e tomado pela gritaria. Mas aquele que sabe não tem necessidade de gritar. A palavra da verdade é uma só, e quando é pronunciada, devem cessar os gritos dos que disputam. Se porém, os gritos continuam, é porque ainda não há a verdade.
Silenciado, percebeu seu isolamento em meio de toda aquela gente que se considerava servidora da ciência.


* Antes da aceitação cabal das teorias de Johannes Kepler e Isaac Newton, astronomia e astrologia eram estudas juntas, sem distinção, como uma única “ciência”.


Bibliografia recomendada:
CAPRA, Fritjof, A Ciência de Leonardo da Vinci, Cultrix, 2008.
DA VINCI, Leonardo, Anotações de Da Vinci por Ele Mesmo, Madras, 2004.
GOULD, Stephen Jay, A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, Companhia das Letras, 2003.

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