terça-feira, março 01, 2011

O URSO NADADOR DE CHARLES DARWIN

Em pleno século XIX, com suas primeiras deduções a respeito da evolução dos seres vivos (que décadas mais tarde culminaria com o lançamento do clássico "A Origem das Espécies e a Seleção Natural") tomando forma, o naturalista inglês Charles Robert Darwin chegou a seguinte conclusão, ao observar um enorme urso pardo (Ursus arctus) que estava nadando num lago com a boca aberta para apanhar insetos:

Não vejo problemas em imaginar um urso se tornando, por necessidade, cada vez mais aquático, e tendo uma boca cada vez maior, para poder apanhar peixes, insetos e outros pequenos seres em maior quantidade. Seus descendentes então se tornariam cada vez maiores, com bocas maiores e cada vez mais aquáticos. Até se transformarem em enormes baleias.

Esse curioso raciocínio de Darwin apareceu nas primeiras edições de "A Origem das Espécies", sendo um dos pontos do livro mais criticados por seus adversários, inclusive outros naturalistas da época; pois era uma afirmação que carecia de evidências. O próprio Stephen Jay Gould (1941-2002), paleontólogo e um dos maiores divulgadores da evolução biológica do final do século XX, classificou a afirmativa de Darwin como "boba"; nem correta nem errada, apenas "boba”, por não ser científica, não caracterizar uma teoria e não se basear em evidências para sustentar-se. Enfim, era apenas um palpite. E um palpite dos mais infelizes. Darwin foi inúmeras vezes atacado por causa desse urso, às vezes de forma bem dura, perdendo apenas em críticas pela sua mais famosa conclusão – a de que o homem e os símios possuem um ancestral comum (justamente essa, ironicamente, baseada em evidências contundentes). As críticas a Darwin e o conseqüente mal-estar foram tamanhos que, com o passar dos anos, o comentário sobre o tal urso discretamente desapareceu das edições subseqüentes da obra (nas edições brasileiras, por exemplo, ele não existe).
Até meados do século XX, a evolução dos cetáceos (baleias, golfinhos e seus parentes) foi um dos maiores "trunfos" dos críticos da teoria evolutiva, notadamente os criacionistas. Simplesmente porque, embora anatomicamente fosse perfeitamente possível inferir pela simples observação do esqueleto desses animais que os mesmos eram descendentes de mamíferos terrestres quadrúpedes, desconhecia-se até então o registro fóssil de tal transição terra-mar. Para os criacionistas, seria uma prova cabal de que a evolução não ocorria: se existiram tais animais intermediários, por que ninguém os encontrava? Claro que o desconhecimento ou mesmo a inexistência de supostos espécimes intermediários é um problema criado pelos próprios criacionistas, originário da sua própria ignorância a respeito do registro fóssil, e que em nada invalida a Teoria da Evolução - qualquer bom estudante das áreas biológicas ou entusiasta da vida pré-histórica sabe que boa parte dos seres vivos que viveram na Terra sequer deixaram rastros da sua existência. Ao contrário do que os criacionistas mal informados pensam, não dependemos dos fósseis como evidência definitiva da evolução. A descoberta de alguns fósseis de tipos "intermediários" (criacionistas adoram utilizar esse termo, desconhecendo que toda a forma de vida é de certa maneira uma espécie intermediária) apenas confirmam o que já se sabia por outros meios, como a genética e a anatomia comparada. Mas esse é um assunto que tomaria muito espaço se abordado detalhadamente neste texto. Fica para um post futuro.
Contudo, o tempo mostraria que o equívoco de Darwin não fora assim tão grotesco, embora não deixasse de ser de fato um equívoco. Essa virada a favor do pai da teoria da evolução teve início na última década do século passado. A cerca de 50 milhões até 45 milhões de anos, boa parte do que hoje conhecemos como Oriente Médio era uma região de clima temperado a subtropical recoberta por um mar, posteriormente batizado pelas geociências como Mar de Thetis. Em 1983 o paleontólogo norte-americano Phillip Gingerich, da Universidade de Michigan, juntamente com N.A. Wells, D.E. Russell e S.M.Ibrahim Shah descobriram na região onde hoje fica o Paquistão, o fóssil de um animal que viveu há cerca de 50 milhões de anos, extremamente semelhante a uma baleia. E o mais interessante é que esse animal apresentava uma característica anatômica impossível de ser desconsiderada: era um mamífero terrestre e quadrúpede. Recebeu o nome de Pakycetus ("baleia do Paquistão"), e provavelmente vivia de modo semelhante ao de muitos mamíferos pescadores atuais, indo freqüentemente à água para buscar comida. Mas o Pakycetus ainda guardava mais surpresas: seu crânio era notavelmente semelhante ao de um grupo de mamíferos onívoros, hoje extinto, cuja aparência lembrava vagamente a de um cachorro. Isso só veio confirmar o que alguns pesquisadores já suspeitavam há décadas. Esses animais eram os membros da família Mesonychidae, que por sua vez fazem parte do extinto grupo dos Condilarthra; os ancestrais de todos os mamíferos ungulados (dotados de unhas em forma de casco). Sim, isso mesmo. Por mais diferentes que esses bichos sejam hoje em dia, baleias, porcos, girafas, cavalos e elefantes são parentes distantes, pois possuem um ancestral comum.

Reconstituição de uma das espécies mais representativas dos Mesonychidae, procurando alimento numa praia junto ao Mar de Thetis (Natural History of Northern Arizona Museum).


Reconstituição do Pakycetus attocki (de Cristobal Aparicio, Universidad di Salamanca).
Durante toda a década de 1990 e início do século XXI, fósseis de diferentes espécies de protocetáceos foram descobertos, a ponto de ser possível reconstruir praticamente todos os estágios evolutivos do mamífero quadrúpede ao completamente aquático e pelágico, incluindo alguns “becos sem saída” – caminhos evolutivos que se extinguiram sem deixar descendência. O Mar de Thetis revelou-se um autentico paraíso de leviatãs. Talvez o exemplar mais fascinante desta história evolutiva seja o Ambulocetus natans ("a baleia que caminha e nada") descoberto em 1994 e que viveu há 48 milhões de anos; um predador de hábitos completamente anfíbios, cujos membros transformados em nadadeiras lhe propiciavam uma locomoção muito semelhante a dos atuais leões-marinhos. As nadadeiras eram o seu principal meio de impulsão, enquanto a longa e fina cauda devia servir de leme dentro d’água. Com até 2,5m de comprimento, seu modo de vida devia ser parecido com o dos jacarés e crocodilos, atacando de emboscada pequenos animais, tanto os aquáticos quanto os terrestres que vinham até a margem beber. O Ambulocetus e os já completamente aquáticos Basilosaurus e Dorudon estão entre os "astros" da série Walking With the Beasts, do acordo BBC/Discovery.

Ambulocetos natans predando um pequeno protoungulado (Carl Buell, 1998).

O uso do tronco, e não dos membros, como principal meio de propulsão durante o nado provavelmente teve início com o pequeno Kutchicetus minimus, que viveu há 45 milhões de anos. O fóssil foi descoberto em 2000, numa região do Mar Thetis que hoje fica no sudoeste da Índia. O esqueleto do Kutchicetus (“baleia de Kutch”, o distrito indiano onde foi encontrado) indica que ele devia nadar de modo muito semelhante às lontras modernas, com movimentos vigorosos da flexível coluna vertebral. Interessante notar que o movimento da cauda dos cetáceos (vertical, diferente do movimento horizontal-lateral da cauda dos peixes) desenvolveu-se a partir dessa flexibilidade presente em vários grupos de mamíferos quadrúpedes, de roedores a felinos. Não é o que ocorre, por exemplo, nos répteis, onde também há grande flexibilidade das vértebras nas serpentes e algumas espécies de lagarto, mas a movimentação é horizontal.
 Reconstituição do Kutchicetus minimus (Carl Buell, 2001).
O Basilosaurus drazindai foi a primeira espécie de cetáceo pré-histórico a ser descoberta, em 1834 na América do Norte, pelo naturalista R. Harlan (1796-1843), logo seguido por uma espécie muito semelhante, o B. Isis, no Egito. Fora batizado com esse nome na época (que significa “lagarto rei”) por Harlan considerar erroneamente o esqueleto como de um réptil marinho (mais apropriadamente um tipo de “serpente marinha”), configurando num dos mais célebres erros da história da paleontologia. Apesar do erro, segundo as regras da nomenclatura paleontológica o nome Basilosaurus deve permanecer, a semelhança do que ocorreu em diversos outros episódios similares – como o do Oviraptor, descrito no meu texto Uma Mãe Dedicada... e Injustiçada. Essa baleia pré-histórica, de 40 milhões de anos atrás, atingia até 16m de comprimento e, embora bem menos veloz que as orcas e outros parentes distantes atuais, sua dentição indica que devia ser um predador ativo. Alguns estudiosos sugerem que suas presas habituais podiam ter até 2m – o que incluiria tranquilamente outros mamíferos marinhos. Embora totalmente adaptado à vida nos oceanos, o Basilosaurus apresenta duas características anatômicas que o deixam mais próximo dos ancestrais terrestres que as baleias atuais: seu corpo era ainda bastante alongado, bem menos hidrodinâmico; e (talvez o ponto mais interessante) ainda retinha os membros posteriores, se bem que extremamente atrofiados. Diferentes das baleias atuais, que possuem apenas vestígios de tais membros, os do Basilosurus são formados por um esqueleto completo e tudo indica que eram perfeitamente funcionais. Sua função ainda e discutível. Ao contrário do que esperam muitos daqueles não familiarizados com a evolução biológica, nada impede que tais membros não tivessem de fato função alguma, uma vez que tal ocorrência é relativamente comum na natureza (vide o nosso apêndice intestinal). Órgãos e estruturas que perdem a sua utilidade num organismo não desaparecem de uma hora para outra, evolutivamente falando. Mas a proximidade com os órgãos genitais fez Gingerich sugerir que (e eu me incluo entre os paleontólogos e biólogos evolutivos que apóiam tal teoria) os membros posteriores do Basilosaurus serviriam como auxiliares durante a cópula, com macho e fêmea os usando para se segurar um ao outro. De fato, o corpo quase serpentiforme do Basilosaurus torna bem difícil imaginar uma cópula similar à dos cetáceos atuais sem uma ajuda extra. Espécies mais antigas descobertas posteriormente como o Rodhocetus kasranii e o Takracetus simus, apresentam membros posteriores proporcionalmente maiores que os do Basilosaurus. Como eram completamente aquáticos e já faziam uso da cauda para propulsão (suas reconstituições quase sempre os representam com uma nadadeira caudal igual a dos cetáceos atuais), supõe-se que esses membros os impedisse de encalhar nas suas incursões por praias mais rasas.
Reconstituição moderna do Basilosaurus (=Zeuglodon), com os reduzidos membros posteriores em destaque.


Obviamente, muitas questões referentes aos aspectos da evolução das baleias e seus parentes continuam sem resposta. E muitas das idéias estabelecidas nos anos 90, hoje estão sendo postas em xeque. Alguns pesquisadores já duvidam dos Mesonychidae como ancestrais dos cetáceos (embora seja indiscutível a origem protoungulada dos mesmos) e há aqueles que levantam a hipótese deles estarem mais relacionados filogeneticamente com os ancestrais dos hipopótamos. De qualquer forma, esse não apenas constitui um dos episódios mais interessantes da evolução biológica, como também representam um duro golpe contra o criacionismo. Numa entrevista em 1994, Phillip Gingerich disse o seguinte.

Se você fica satisfeito com uma história que inventa, tudo bem. Mas eu não sou assim. Eu quero saber o porquê daquilo ser de um jeito e não de outro. Quero saber se estou realmente certo. Deixo os fósseis falarem comigo, quero que eles falem comigo. Por isso, quando descobrimos o Pachycetus de 50 milhões de anos, sabendo do Basilossaurus de 40 milhões de anos; percebemos que tínhamos 10 milhões de anos com que trabalhar. E isso me deixou muito satisfeito, porque não precisava ser daquela maneira.


Provável filogenia dos cetáceos.


Ainda que Charles Darwin tenha sido precipitado e nada científico na sua dedução apresentada no início deste texto, percebemos que ele não estava de todo errado. As baleias e seus parentes realmente evoluíram de mamíferos quadrúpedes e onívoros, ainda que sem qualquer parentesco próximo com os ursos. E na verdade, os dois grupos nem são anatomicamente tão diferentes, apesar de filogeneticamente distantes – os ursos evoluíram a partir de um ramo da família dos canídeos e os Mesonychidae deviam ser extremamente parecidos com cães no seu aspecto externo, ainda que com um crânio proporcionalmente bem maior (algumas espécies como o Andrewsarchus mongoliensis apresentam uma cabeça de comprimento quase igual a metade do comprimento do tronco).
Muitas vezes deduções geniais precisam apenas ser testadas por meio das evidências para mostrarem-se válidas. Diferente do que alguns “racionalistas” defendem a ciência não está completamente isenta das características humanas de seus profissionais, pois a mente humana, por mais que alguns queiram, nunca é totalmente racional e analítica. Como criação humana, a ciência sempre estará sujeita aos contextos humanos. Por incontáveis vezes na História da Ciência o contexto social e cultual influenciou pesquisas científicas e as próprias idéias dos cientistas (para ver um exemplo, ofereço meu texto Os Moluscos de Leonardo da Vinci). A verdade é que os cientistas e os artistas são muito mais parecidos do que muitos dos representantes desses dois segmentos gostariam de admitir. Antes de qualquer dedução teórica o cientista faz uso da sua criatividade. E ela pode ou não evoluir para resultados positivos. Há quem acredite que este tipo de criatividade, acompanhada da intuição, seja a marca registrada dos grandes gênios (Da Vinci e Einstein desenvolveram algumas hipóteses de forma semelhante). Independente disso é sempre recomendável lembrar que cientistas são, antes de tudo, seres humanos.

2 comentários:

Bondgirlpatthy 007 disse...

Interessante notar como as espécies evoluíram nesses milhões de anos. Mtos seres vivos não "mudaram" quase nada já outros sofreram mudanças mto radicais. Tira uma dúvida minha: Os pterodáptiros são o q conhecemos hj como aves? E se for o caso, p/ q tipo de aves eles evoluíram? Obrigada, bjs. Ah, aparece na Con 007.

Átila Oliveira disse...

Oi Patthy.
Respondendo a sua pergunta, não, os répteis voadores ou pterossauros (grupo do qual os pterodáctilos fazem parte) não são aves e nem mesmo são parentes próximos delas. As aves evoluíram de pequenos dinossauros carnívoros bípedes, semelhantes ao velociraptor. A semelhança entre alguns destes dinossauros e as aves propriamente ditas é tamanho que alguns especialistas até costumam dizer que eles são foram na verdade extintos, pois as aves "são dinossauros". Já os pteorossauros se extinguiram sem deixar qualquer tipo de descendencia. A semelhança entre estes animais e as aves (assim como outroa casos, como as semelhanças espantosas entre alguns mamíferos marsupiais da Austrália e placentários, ou entre golfinhos, tubarões e ictiossauros) refletem o fenômeno conhecido como Evolução Convergente, onde grupos sem qualquer parentesco desenvolvem características semelhantes e acabam ficando externamente muito parecidos.
Bjs.

BlogBlogs.Com.Br