Num post publicado em novembro do ano passado (Sobre o Criacionismo) procurei definir o criacionismo e apontar as suas principais características junto ao leitor não especializado, bem como apresentar as formas de desonestidade intelectual, empregadas por alguns dos seus adeptos, com o intuito de fazer parecer que esse embuste tenha algum fundamento. Também me senti na obrigação de esclarecer no mesmo texto que é perfeitamente possível ter uma fé e aceitar a evolução dos seres vivos, desde que a mesma não exclua esse fato. Fé é ciência não precisam ser inimigas, ao contrário do que pregam fanáticos de ambos os lados. Hoje, venho abordar aquilo que não apenas move como também sustenta todo o pensamento criacionista. Por que existem pessoas que se recusam com tamanha veemência a aceitar o fato mais que comprovado da evolução biológica? Em que se fundamenta a doutrina criacionista? Na fé? De certa forma, sim. Mas trata-se, contudo, de um tipo bem específico de fé. Quando se aborda esse tipo de assunto deve-se evitar ao máximo o caminho perigoso das generalizações e rótulos. Podemos iniciar pela leitura do trecho que se segue:
"Isso é totalmente contrário ao que ensina a Bíblia. Sabemos que somos a excelência da criação, que fomos criados um pouco menores que os anjos, que fomos feitos à imagem e semelhança de Deus. Mas a evolução nos ensina que somos apenas mais uma espécie na natureza. Não posso acreditar na evolução e me considerar um primo, ainda que distante, das baratas."
A afirmação acima faz parte de uma “apostila” que chegou às minhas mãos em 2004, onde o biólogo criacionista (sim, eles existem, por mais contraditório que isso seja) Marcos David Muhlpointner tenta refutar as bases da teoria da evolução biológica. Cheguei a comentar o conteúdo da mesma no antigo endereço deste blog, algo que hoje consideraria desnecessário. Independente de tal episódio é importante notar que a passagem destacada ilustra de maneira bem clara e direta a força motriz do criacionismo. O que motiva um criacionista a manter sua fé nada mais é do que a necessidade de se sentir como uma criatura especial e superior a todas as demais. A espécie favorita do Criador. Numa cultura onde essa visão de mundo predomina, qualquer oposição supostamente embasada à idéia do ser humano como apenas mais um animal cai como uma luva, servindo como porto seguro, ainda que totalmente ilusório, a quem compartilha dela.
Cabe esclarecer que, embora tal forma de fé seja uma característica fundamental de certas religiões pentecostais e neopentecostais, outras formas de monoteísmo não a levam tão ao pé da letra. Na verdade, a maioria das religiões do tronco judaico-cristão aceita a evolução biológica sem problemas. Mas o criacionismo soube muito bem potencializar o conceito e expandir as fronteiras dessa crença na superioridade humana, baseando-se em parte no fato da Reforma Protestante defender (e pregar desde então) uma interpretação literal e não metafórica dos textos sagrados – prometo abordar essa questão num post futuro. Chega a ser engraçado perceber como essa suposta literalidade acabou criando toda uma nova horda de símbolos e metáforas, cujos detalhes este biólogo, reconhecendo seus limites, prefere deixar a cargo dos estudiosos da semiótica e áreas correlatas.
A verdade é que, via de regra, criacionistas claramente enxergam na teoria da evolução biológica, antes de qualquer coisa e não raras vezes de maneira inconsciente, uma ofensa pessoal. Por ser uma teoria científica e justamente por isso mostrar as coisas como elas realmente são (nesse caso o ser humano como apenas mais uma espécie na natureza), independente disso ser agradável ou não, ela vai de encontro à idéia propagada por alguns líderes religiosos de que a humanidade seria a obra favorita de Deus. Para um criacionista, ser considerado um animal ou mesmo comparado com os outros animais é a maior das afrontas. A coisa se torna ainda pior quando esses animais são do tipo que pouca gente vê alguma beleza, como as baratas e, especialmente, os grandes símios (bonobos, chimpanzés, gorilas e orangotangos). Preferem ver a si mesmos como especiais e separados da natureza, sobre a qual teriam plenos poderes concedidos por sua divindade. Isso já explica quase que por completo a resistência em aceitar a evolução biológica por parte desses indivíduos: orgulho e soberba infantis, levados às últimas conseqüências. São como aquelas crianças mimadas e inseguras, que precisam se sentir o(a) filho(a) ou aluno(a) preferido(a) para serem felizes. Afirmações famosas da retórica criacionista como “eu não vim do macaco” ou “o ser humano não é apenas um chimpanzé evoluído” refletem tanto esse egocentrismo quanto o desconhecimento dos fundamentos mais básicos da biologia – lembrando que falta de conhecimento é algo sempre conveniente quando o objetivo é a manipulação. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que faz parte do comportamento criacionista acusar os cientistas de arrogância. Trata-se da projeção psicológica mais uma vez se revelando como uma ferramenta recorrente.
O fato é que, gostando ou não, somos primatas (e como tais, descendemos de outros primatas), como primatas somos mamíferos, como mamíferos somos vertebrados, e como vertebrados somos animais – os conhecedores de taxonomia notarão que exclui propositalmente vários grupos nessa escala lineana simplificada; o objetivo aqui é poupar os leitores não familiarizados com o assunto de um incômodo desnecessário. Temos 98% de semelhança genética com os chimpanzés (Pan troglodytes), doa a quem doer. Nenhuma pregação enfurecida mudará esse fato. E mais: a ciência já provou que não somos a única espécie animal dotada de características como consciência, emoções e raciocínio. E nem me refiro especificamente aos símios nesse caso. Qualquer graduando que já teve a oportunidade de realizar um experimento comportamental utilizando ratos sabe muito bem o que quero dizer. O número de semelhanças da nossa espécie com as outras é muito maior do que as diferenças, para desespero dos defensores do “um pouco menores que os anjos” (esses por si só uma grande projeção antropocêntrica). E esse número aumenta em progressão geométrica quando se aproxima o parentesco: temos mais em comum com um cão que com uma jibóia e, por sua vez, muito mais em comum com um macaco prego que com os cães.
A maior semelhança entre alguns tipos de seres vivos em comparação com outros constitui evidencia óbvia da evolução. Se, como os criacionistas defendem, ela não existisse, todas as espécies teriam o mesmo grau de semelhança: todos muito parecidos ou todos muito diferentes entre si. A variabilidade (e aqui incluo obviamente a variabilidade genética) é uma prova cabal da evolução. Sem evolução parentescos não existiriam – ou todas as espécies teriam o mesmo grau de parentesco, dependendo da abordagem. Só não vê quem não quer. E sabemos quanto o fanatismo é capaz de cegar.
Uma das maiores “pérolas” criacionistas atribui à fala uma prova clara da superioridade humana. Gostam de repetir feito mainás histéricos (trocadilho proposital) que nenhum outro primata se tornou capaz de conseguir o mesmo, o que evidenciaria o fato do Homo sapiens ser uma criatura especial. Afirmam ainda que tal característica seria uma evidência da imensa superioridade e divina complexidade do cérebro humano. Entretanto, biólogos sabem que gorilas e chimpanzés são incapazes de falar não por uma suposta inferioridade cerebral (cabe aqui frisar que neurocientistas comparam o cérebro desses símios com os de crianças de 2-3 anos, ou seja, idade onde em geral a linguagem falada já se encontra plenamente desenvolvida), mas sim pelo seu aparelho vocal, que é bem mais limitado que o nosso. E lembrando que não foram poucos os chimpanzés e gorilas que, devidamente estimulados e condicionados, aprenderam a se comunicar com seres humanos de maneira não falada, incluindo linguagem de sinais. Indo mais longe: a complexidade anatômica do cérebro humano (ainda que não seja confiável utilizar tal característica isolada para inferir a capacidade cerebral de um animal) não é superior a de algumas espécies de baleias e golfinhos (capazes, entre outras coisas, de ações planejadas). E indo mais longe ainda: experimentos com algumas espécies de papagaio mostraram espantosa correlação entre suas frases e suas ações (e por que não dizer, intenções?), revelando assim que não são meros repetidores de palavras. Mais uma vez, as semelhanças suplantando as diferenças.
Notem que no trecho citado no início deste post o autor declara “não poder acreditar na evolução”. Dentro do festival de falácias e distorções de fatos que lhes é comum, alguns criacionistas gostam de acusar os biólogos que lidam com evolução de defenderem uma crença, algo que careceria de qualquer embasamento real – mais uma vez a projeção. Todo cientista, biólogo ou não, sabe que uma teoria não é (ou ao menos não deveria ser) elaborada para se acreditar nela, uma vez que a mesma se baseia em evidências e não na fé (ver meu texto Ciência e Trabalho Científico). Claro que a contingência histórica influenciou (e provavelmente ainda influencia) muitos cientistas na elaboração das suas teorias, algumas das quais se mostraram incorretas posteriormente (apresentei um exemplo em Os Moluscos de Leonardo da Vinci). Mas usar esse argumento para desacreditar uma teoria científica caracteriza ou uma ingenuidade digna de pena ou uma desonestidade atroz. Seria o equivalente a desacreditar toda a engenharia por um episódio de edifício mal construído. A única maneira de se refutar uma teoria é por meio de outra teoria, coisa que sabemos que o criacionismo está muito longe de ser, pois se baseia única e exclusivamente numa forma de fé. Não há qualquer evidencia que sustente a “ciência da criação”. Já a evolução biológica está repleta de evidencias que podem ser facilmente verificadas em qualquer biblioteca, livraria ou museu. Mais uma vez, só não vê quem não quer.
Conclui-se, portanto, que o alicerce fundamental da fé criacionista é um só e, diga-se de passagem, extremamente frágil. Talvez por isso alguns dos seus seguidores atuem de maneira tão desesperada e por vezes agressiva para que o mesmo não seja definitivamente demolido. Para essas pessoas, se tal pilar ceder o seu mundo desmoronará junto. De fato, constitui um choque muito grande se descobrir como nada superior ou favorito entre as demais criações da natureza. Mas como denota a própria etimologia da palavra desilusão; algumas vezes é preciso destruir ilusões para enxergar as coisas como realmente são. Infelizmente, certas mentiras são por demais confortáveis. Por outro lado, nada disso pode negar que somos uma espécie bem peculiar e de fato muito interessante: um macaco bípede, pelado e neotênico, cuja criatividade e adaptabilidade só se equiparam à sua prepotência.
O egocentrismo humano terminou por nos presentear com a falsa impressão de que a natureza nos pertence e que tem a obrigação de nos agradar. Mas nós é que somos parte dela, que simplesmente é como é; sem nos dever qualquer satisfação por isso. O universo não está nem aí pra nossa mania de grandeza. Goste ou não, a evolução biológica ocorre, assim como a translação da Terra em torno do Sol e os movimentos das partículas elementares da matéria. Àqueles com dificuldade em aceitar essa realidade eu, como criatura cheia de vícios de comportamento e longe de possuir grandes conhecimentos só posso sugerir um ato que, há bem pouco tempo, equivocadamente se tinha como exclusividade da nossa espécie: senta e chora.
Bibliografia recomendada:
ARNOULD, Jacques, A Teologia Depois de Darwin, Edições Loyola, 2001.
DAWKINS, Richard, O Maior Espetáculo da Terra; As Evidências da Evolução, Companhia da Letras, 2009.
FUTUYMA, Douglas J., Biologia Evolutiva, FUNPEC, 2003.
GOULD, Stephen Jay, Hen’s Teeth and Horse’s Toes, W.W. Norton, 1983.
ZIMMER, Carl, O Livro de Ouro da Evolução: O Triunfo de Uma Idéia, Ediouro, 2003.