sábado, junho 25, 2011

HOMOSSEXUALIDADE ANIMAL

Já há algum tempo venho preparando um texto sobre a homossexualidade no reino animal. Sim, ao contrário do que os mais desinformados pensam ela não é exclusividade da espécie humana. E o lançamento de A Fantástica Literatura Queer (brilhantemente idealizada e organizada por Rober Pinheiro e minha amiga Cristina Lasaitis), bem como a proximidade da Parada do Orgulho LGBT, me mostrou que nesse ano não haveria momento mais oportuno para postá-lo que agora.
Para desespero dos homofóbicos de plantão, a ciência tem descoberto um número cada vez maior de evidências da homossexualidade em outras espécies animais, além do Homo sapiens. Isso por si só já bastaria para derrubar de uma vez por todas o principal argumento daqueles que procuram justificar a homofobia, principalmente certos segmentos religiosos: a de que a homossexualidade seria "algo contra a natureza". Aliás, tal afirmação constitui justificativa das mais pobres e frágeis; uma vez que feitos como a agricultura, a prevenção de doenças, a correção de defeitos congênitos e a própria fabricação de medicamentos também são atitudes não naturais da espécie humana. O comportamento homofóbico, como toda intolerância baseada no puro preconceito, relaciona-se com uma desesperada procura de uma justificativa para o ódio injustificável. De fato, é muito mais fácil atribuir a origem de preconceitos a entes externos como Deus ou um livro sagrado que assumi-los publicamente. Se reconhecer e se assumir como um indivíduo preconceituoso requer muita coragem.
Apenas no início do século XX alguns pesquisadores pararam de fazer vista grossa para algo que julgavam imoral -
sim, sempre houve e ainda há preconceito na ciência, pois cientistas são antes de tudo seres humanos. Em 1999, o zoólogo canadense Bruce Bagemihl listou 1500 espécies de animais onde existe algum comportamento que caracteriza envolvimento sexual e/ou afetivo entre indivíduos do mesmo sexo; sendo em sua maioria (mas não apenas), mamíferos e aves. A lista é enorme: leões, golfinhos, elefantes, rinocerontes, lobos (e sua subespécie bem conhecida de todos nós, o cão doméstico), ratos, quase todas as espécies de pássaros e praticamente todos os primatas, só pra citar alguns exemplos.
Mas é preciso cautela. Tais descobertas de forma alguma evidenciam a existência de uma possível origem genética para a homossexualidade na espécie humana, como querem alguns. Na natureza a sexualidade é extremamente diversificada e em algumas espécies o comportamento homossexual se apresenta de forma bem diferente do que se observa na nossa espécie. Com base no que já se descobriu, inclusive do ponto de vista evolutivo, chega a ser ingênuo querer estabelecer uma teoria de origem comum para a homossexualidade em todo o reino animal, ou mesmo para todos os mamíferos. Tudo indica que ela apareceu mais de uma vez, de maneiras diferentes e independentes na história da sexualidade das espécies. Ou seja, não foi um acontecimento único e isolado, evoluído linearmente, mas sim vários eventos pontuais, extremamente abrangentes e multifacetados (como a própria sexualidade em si, diga-se de passagem). Sem sombra de dúvida, um tema complexo. Trabalhos multidisciplinares parece ser o caminho para compreender a homossexualidade humana e dos outros animais. Eis um campo de estudo interessante e promissor, onde muitas pistas ainda estão esperando para serem descobertas.
A seguir, apresento dez espécies onde a homossexualidade se manifesta de maneiras bem particulares:



 Bonobo (Pan paniscus) - Ao contrário dos seus parentes próximos, os chimpanzés (Pan troglodytes), os bonobos são extremamente pacíficos e pouco territorialistas; muito raramente fazendo uso de agressões físicas, seja entre membros da mesma espécie, seja com outros animais. Além disso, não apresentam o que se poderia chamar de uma hierarquia social. Mas o mais curioso são suas interações sociais: que não são estabelecidas por meio da intimidação ou da violência, como nos chimpanzés, mas sim sob formas bem mais gentis, não raras vezes fazendo uso do contato sexual. Poligâmicos, os bonobos possuem uma sexualidade extremamente variada: heterossexuais, machos com machos, fêmeas com fêmeas (caso da foto acima, o maior número de contados homossexuais registrados na espécie), machos adolescentes montando fêmeas maduras, machos adultos montando fêmeas adolescentes, fêmeas maduras masturbando jovens machos, fêmeas velhas abaixando-se delicadamente quase ao nível do chão para permitirem-se penetradas por filhotes machos. Alguns pesquisadores chegaram a afirmar que não existem bonobos fêmeas heterossexuais, mas apenas bissexuais (que seriam a maioria) ou homossexuais. Essa também é uma das diversas espécies de primatas onde se observou relações homossexuais que culminaram em algo muito semelhante ao orgasmo humano. O bonobo foi a primeira espécie, além do homem, onde se notou que o sexo não se limitava ao propósito da reprodução, incluindo sexo oral tanto nas relações hetero quanto homossexuais. O sexo nessa espécie parece ter uma importância tão ou maior que na espécie humana, uma vez que além do prazer, envolve todo um contexto social.



 "Blackbuck” (Antilopa cervicapra) - Esse ruminante asiático muda a sexualidade conforme a idade. Até o presente momento, machos adultos homossexuais são desconhecidos. Mas curiosamente, e por motivo ainda ignorado, todos os machos adolescentes (que possuem a mesma tonalidade castanha das fêmeas) são exclusivamente homossexuais, copulando entre si. Só começam a procurar fêmeas após atingirem a maturidade e adquirirem a característica coloração negra com o ventre branco dos machos adultos, que são solitários a maior parte do ano, formando haréns na época do acasalamento – como na foto acima.




Cisne Trombeteiro (Cygnus buccinator) – O maior pássaro da América do Norte, essa espécie foi equivocadamente eleita como símbolo do amor entre um homem e uma mulher, bem como da fidelidade amorosa. De fato, até algumas igrejas (incluindo a católica romana) chegaram a citar por mais de uma vez o cisne em defesa do casamento tradicional e para condenar o adultério. A grande verdade porém é que o cisne trombeteiro, bem como todas as outras espécies de cisne, não é nenhuma das duas coisas. Estudos em genética nas duas últimas décadas mostraram que, embora essencialmente monogâmicos, muitas vezes as ninhadas de cisnes têm pais biológicos diferentes do parceiro com o qual a fêmea divide os cuidados do ninho. E para sepultar de uma vez a fama desses animais como marido/esposa fiéis, geralmente esses pais biológicos são machos “comprometidos” com outras fêmeas. Também já se observou diversos contatos homossexuais em indivíduos de ambos os sexos nessas “puladas de cerca”, ainda que as mesmas sejam bem mais comuns nos indivíduos jovens, que não realizaram sua primeira postura. Cabe aqui adicionar que em virtualmente todas as espécies de pássaros ocorrem contatos homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em ejaculação.



Hiena Malhada (Crocuta crocuta) - Uma das características da família dos hienídeos é a presença nas fêmeas (geralmente pouco maiores que os machos) de uma bolsa escrotal oca. E o clitóris delas é enorme e alongado, muito semelhante a um pênis. Além disso, fora da época da reprodução, sua abertura vaginal permanece fechada e impenetrável. Devido a essas características bem peculiares, até meados do século XIX pensava-se que as hienas (família Hienidae) fossem hermafroditas – outra característica vista como demoníaca por alguns segmentos religiosos judaico-cristãos. Realmente, em muitos casos, só é possível distinguir o sexo de uma hiena apalpando-lhe a bolsa escrotal. Os bandos de hienas malhadas são sociedades matriarcais, lideradas por uma fêmea dominante. Há décadas registra-se um número expressivo de falsas cópulas entre fêmeas adultas e mesmo jovens. Todo ano, grupos de 2 a 4 fêmeas (muitas vezes com filhotes) se separam do resto bando e assim ficam, por períodos que variam de meses até o resto da vida, compartilhando comida e executando falsas cópulas com relativa frequência.



 Urso Pardo (Ursos arctus) – Mais precisamente, as ursas pardas. Há uma farta documentação a respeito de fêmeas nessa espécie que poderiam ser classificadas, segundo critérios humanos extremamente restritivos, como bissexuais. Ocorre que os ursos pardos (o maior predador terrestre do Hemisfério Norte) são animais solitários, sendo que os machos procuram as fêmeas apenas na época do acasalamento. O casal nem chega a conviver junto por muito tempo, ficando a fêmea como a única responsável pela criação dos filhotes – que por sinal têm os machos adultos da própria espécie como seus principais predadores. Não são raros os casos de duas fêmeas que pariram na mesma época acabarem se unindo para cuidarem juntas das suas ninhadas. O que poderia ser apenas uma “parceria de amigas com necessidades em comum” revela-se algo mais se atentarmos para o fato que em 90% desses casos elas trocam carícias e até executam falsa cópulas com contatos vaginais, não raras vezes resultando em orgasmos.




Borboletas Nynphalídeas (diversas espécies) – Essa família de borboletas inclui várias das espécies possuidoras de grandes ocelos nas asas (desenhos que lembram olhos, cujas funções vão de afugentar predadores a chamarem a atenção das fêmeas), geralmente mais desenvolvidas nos machos. Em 2010, Antonia Monteiro e Kathleen L. Prudic da Universidade de Yale realizaram um interessante estudo sobre a sexualidade desse tipo de borboleta, no qual há uma documentação expressiva sobre homossexualidade, especialmente entre fêmeas. O referido estudo foi posteriormente publicado na revista Science. As autoras estudaram o comportamento sexual de borboletas criadas a 27ºC e a 17ºC. Notou-se que nas temperaturas mais frias, as lagartas fêmeas davam origem a adultas que adotavam um comportamento mais ativo no que diz respeito à reprodução, literalmente cortejando os machos. Em algumas espécies, até os ocelos das asas, tornaram-se maiores e mais vivos. Já as lagartas de temperaturas mais elevadas originam fêmeas mais passivas, que apenas esperam o cortejo dos machos. O resultado é que as fêmeas mais ativas acabam sendo aquelas com maior sucesso reprodutivo. Além disso, é justamente nelas que se observa interações homossexuais. A grande questão é: será que as duas características possuem alguma ligação?



Argali ou Bighorn (Ovis ammon) – Esse majestoso carneiro selvagem vive numa região montanhosa que vai do Oriente Médio a Mongólia, passando pelo Himalaia. Os machos são geralmente solitários quase o ano todo, formando grandes haréns na época do acasalamento. As fêmeas vivem em pequenos grupos. Como ocorre geralmente nas espécies poligâmicas, o dimorfismo sexual é bem acentuado, sendo os machos bem maiores e com grandes cornos curvados em forma de meia lua, que usam em disputas territoriais ou por fêmeas – dos quais os maiores pares chegam a pesar 200 kg. Nessa espécie, alguns machos adultos ou jovens podem formar pequenos grupos (como o da foto acima), onde são bastante comuns contatos sexuais, incluindo lambidas na região genital resultando em ejaculações. Alguns desses indivíduos passam a vida inteira nesses grupos, nunca procurando fêmeas.



Babuíno Dourado (Papio cinocephalus) – Nessa espécie registraram-se diversos contados homossexuais em ambos os sexos. E assim como nos bonobos (vide acima), já se observou não apenas o autêntico orgasmo, como também que a vocalização das fêmeas no momento da cópula é um indicativo claro de prazer – fêmeas que fazem sexo às escondidas (como as que “traem” o grande macho dominante com outros machos do bando) costumam manter o silencio durante o ato. Hoje já se sabe que essa é uma característica comum a todos os primatas e não exclusiva da espécie humana. Embora bem mais agressivos e combativos que os bonobos, os babuínos também possuem um comportamento sexual com contexto social: a montada. Entre os babuínos há o hábito de ser virar o traseiro para os indivíduos dominantes, em sinal de submissão. E é comum entre os machos adultos a penetração anal, montando outro macho hierarquicamente inferior. Como resultado, o líder monta todos os indivíduos adultos do bando. Embora mais raros há líderes, apelidados por alguns primatólogos de "machos Nero", que também se permitem montar por outros machos hierarquicamente graduados.



Baleia Cinzenta (Eschrichtius robustus) - Na época da reprodução, grupos de machos dessa espécie de cetáceo avançam nos mares árticos em busca das fêmeas. Na verdade, nem todos. Durante o trajeto alguns machos esfregam seus corpos em outros machos, quase sempre tendo ereções. Essa troca de carícias geralmente culmina com dois ou três machos cercando um terceiro, tentando copular com este (normalmente sem sucesso) e finalizando com ejaculações. Observou-se que a maioria destes machos que participam desta brincadeira sexual não procuram fêmeas para se acasalarem.



Mosca das Frutas (Drosophila melanogaster) - Num estudo realizado em 2005, a equipe liderada pelo neurobiologista australiano Barry Dickson, do Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia Austríaca de Ciências, em Viena; conseguiu alterar o comportamento sexual dessa espécie (uma das mais utilizadas em experimentos científicos) apenas mexendo no seu código genético. Para isso alteraram o gene conhecido como "fruitless" ou "fru", considerado a central para o acasalamento, envolvida no ritual de corte dos machos. Notou-se então que as fêmeas alteradas começaram a procurar outras fêmeas e até a tentar copular com elas; enquanto os machos alterados passaram a se comportar como fêmeas em relação aos outros machos. Esse experimento esquentou ainda mais o debate sobre uma possível origem genética da homossexualidade. Contudo, cabe esclarecer que nos vertebrados, ao contrário do que ocorre nos insetos, não são os cromossomos que determinam a sexualidade. Na verdade ela estaria muito mais relacionada com os hormônios. Ainda assim, muitos estudiosos defendem que essa influencia seria apenas parcial – prova disso é que lésbicas não apresentam necessariamente altos níveis de testosterona, por exemplo.



sexta-feira, junho 10, 2011

NÃO, MULHER NÃO É TUDO VACA


Participantes da Slut Walk São Paulo com seus cartazes (por Tchello).

Na tarde do último sábado realizou-se na Avenida Paulista a Slut Walk (“Marcha das Vadias”) de São Paulo, versão de um evento que teve origem no Canadá, quando universitárias da cidade de Toronto, ao reclamarem do alto índice de estupros, receberam como resposta do xerife local a afirmação de que suas vestimentas inapropriadas e provocativas teriam motivado tais crimes. A Marcha surgiu como reação a esse pensamento machista; procurando alertar a sociedade para a verdadeira cultura do estupro na qual vivemos. Todo aquele que já atentou para o assunto certamente notou as inúmeras vezes em que se procurou criminalizar as mulheres vítimas de violência sexual. “Ela provocou” ou “Ela estava usando roupa curta, quase nua”, são algumas das “justificativas” mais comuns, pra não falar em outras bem mais específicas, como “Ela era uma vagabunda mesmo, merecia” (acreditem, eu já ouvi isso).
Hoje retomo o blog deixando a evolução biológica de lado (ao menos parcialmente) e abordando esse tema, tão espinhoso quanto urgente. Por motivos de força maior, não pude comparecer ao evento, o que já me desqualifica para comentá-lo. Contudo, na qualidade de indivíduo do sexo masculino que gosta muito de mulher (e não apenas de sexo com mulher), acredito poder comentar as motivações do mesmo, bem como o que pude acompanhar depois do seu término. Antes da Marcha li vários textos sobre o tema, alguns excelentes. Mas todos escritos por mulheres. Nada mais justo, pois ninguém melhor que o discriminado para discorrer sobre a discriminação sofrida. Mas confesso que senti falta de uma opinião masculina sobre o assunto. Àqueles que por ventura tiverem curiosidade sobre a minha visão das mulheres, sugiro a leitura do meu post do Dia Internacional da Mulher deste ano.
O que salta aos olhos ao percorrermos os sites de notícias de sábado pra cá é o número nada desprezível de gente que não entendeu absolutamente nada da “Marca das Vadias”. Teve até quem achasse tratar de uma passeata de profissionais do sexo desocupadas. A essas criaturas, só me resta a minha sempre viva vergonha alheia. Infelizmente, esses tipos sempre existirão. Trata-se de um sintoma clássico dos garotos digitais do século XXI, como diz aquela música do Bad Religion: um bando de “especialistas” que leem superficialmente sobre tudo, não entendem realmente nada e sempre ávidos pra vomitar suas ridículas opiniões baseadas em orelhadas e Wikipedia. E há ainda aqueles que claramente nada tem a dizer e querem apenas aparecer – curiosamente, muitas vezes ocultos sob o anonimato.
Mas o que realmente merece atenção é a opinião de gente que entendeu a Marcha e mesmo assim a condena por considerá-la apologia a pornografia, a promiscuidade e a “pouca vergonha” – o que para alguns significa a liberdade feminina. Ou que acha que as mulheres brasileiras deveriam preocupar-se com “assuntos mais importantes”. Mesmo não sendo mulher, me arrisco em perguntar o que seria mais importante pra uma delas que ser dona do seu próprio corpo, o seu templo, numa sociedade em que homens ditam regras a respeito do que e como ela deve fazer com ele. Aqueles que pensam assim geralmente são os mesmos que acham que a Lei Maria da Penha trás privilégios às mulheres – como se em algum momento da nossa história elas tenham sido tratadas em condição de igualdade com os homens. Trata-se apenas de mais uma forma de tentar legitimar a violência sexual contra a mulher, expressa desde em brincadeiras aparentemente inocentes (como a já famosa e pra lá de infeliz piada de Rafinha Bastos sobre estupro e mulheres feias e uma comunidade virtual que pede a “legalização do estupro”) até o argumento (pífio, pra não dizer patético) no qual uma mulher que não quer ser atacada, então que se vista “decentemente” e “se dê ao respeito”. Como homem, gostaria de me aprofundar nessa vergonhosa opção de bater insistentemente nessa tecla, defendida por alguns dos meus pares (e até mesmo algumas mulheres) da espécie.
Comecemos pelo mais evidente: a questão do vestuário. Então uma mulher, para evitar ser estuprada, não pode usar saias curtas ou decotes, sob o risco de “provocar”? Engraçado que ninguém diz o mesmo a respeito dos homens de perna de fora e torso nu – salvo se ele for afeminado, situação em que ele vira a “bichona louca”, o viado que (mais uma vez) “não se dá ao respeito”. Homem com as pernas de fora é elogiado. Mulher de perna de fora vira vadia. Sabemos que na nossa sociedade não precisa muito para uma mulher virar vadia. Basta, por exemplo, ter ficado com mais de um garoto na adolescência; ou ter mais experiências sexuais que seu futuro marido. Quando o assunto é homem x mulher, a cultura de “dois pesos e duas medidas” fala alto, ou melhor, grita. E já que é pra cutucar a ferida, vamos ao extremo dos extremos: os maníacos estupradores, aqueles cujo comportamento é decorrente de uma doença mental. Para esses indivíduos, pouco ou nada importa a roupa que a sua vítima está usando. Muitas vezes, sequer ela precisa ser atraente. Basta ser mulher. O que realmente preocupa é o fato dessa desculpa dos trajes femininos partir justamente daquela parcela da população considerada mentalmente sã. Isso ficou evidente no episódio protagonizado pela universitária e agora pseudocelebridade Geisy Arruda – ou alguém realmente acredita que a machaiada urrante do lado de fora da sala de aula queria apenas agredi-la verbalmente? A polícia não estava lá por brincadeira. Sim, digo mais uma vez, vivemos uma cultura do estupro. Só não vê quem não quer.
Sobre a questão do “se dar ao respeito”, acredito seriamente que isso tem muito mais a ver com comportamento que com visual. Um comportamento vulgar faz qualquer indumentária perder toda a primazia de atenção. E cá entre nós, todos já topamos com mulheres vestidas dos pés à cabeça muito menos respeitáveis (em todos os sentidos) que aquelas que usam saia acima dos joelhos em dias de calor. Sem falar que, com exceção óbvia dos extremos, a questão da vestimenta é muito subjetiva dentro da nossa cultura – comentar agora a (des)importância das roupas em outras culturas só complicaria a situação, além de desviar o foco do post. Uma calça que para alguém é muito justa e chamativa pode parecer discreta para outro.
Agora, o que me arranca gargalhadas, a ponto de doer o meu diafragma são os argumentos daquela minoria que defende o estupro como algo natural e, portanto, aceitável. Sim, eles existem. E mais que ativar a vergonha alheia, são tipos dignos de pena. Esclarecendo, é sabido que o estupro não é exclusividade da espécie humana, ocorrendo em diversas outras espécies entre mamíferos (como gorilas e leões), aves (especialmente as diversas espécies de pato) e até em alguns caranguejos. “E daí?”, perguntarão alguns leitores, com toda razão. Daí que esses indivíduos utilizam tais fatos para justificar a violência contra a mulher. Tal analogia é por demais deficiente uma vez que, ainda que nos dois casos esteja presente a atração física, os motivos centrais da violência sexual no Homo sapiens e noutros animais são bem distintos: enquanto nas outras espécies a intenção é darwinianamente reprodutiva, na nossa ela é claramente de domínio sobre o outro - geralmente, sobre a outra. E para aqueles que ainda acreditam que nossos ancestrais dos tempos das cavernas conseguiam apaziguar seus desejos carnais apenas na base dos sopapos e puxões de cabelo, sugiro abandonar os filmes, desenhos animados e livros de quarenta anos atrás e dar uma lidinha em textos mais recentes sobre a sexualidade humana. Diferente da cultura que hoje domina o planeta, as primeiras sociedades humanas eram igualitárias quanto aos gêneros – e não, não havia o domínio do feminino sobre o masculino, como querem alguns neopagãos analfabetos em história (para maiores detalhes nesse sentido, sugiro meu texto Sobre Fé, Divindades e Epiderme). Descobertas feitas nas últimas duas décadas mostram que, ao contrário do que diz o senso comum, o sexo não consensual nas primeiras populações da nossa espécie além de ser a exceção, em muitas delas gerava punições. Nota-se que a violência sexual só é tolerada em culturas onde a mulher ocupa uma posição de inferioridade em relação ao homem. E a nossa é um exemplo bem palpável.
Apenas não concordei com ao fato da Marcha terminar na figura do “humorista” Rafinha Bastos. A meu ver, isso acabou por descaracterizar o seu propósito original que, como vimos, é muito mais abrangente. Aproveito para informar que, ao manifestar meu repudio a respeito da referida piada do mesmo, alguns me acusaram de defender o politicamente correto. Quem me conhece sabe que de politicamente correto não tenho nada, muito pelo contrário. O problema é que hoje ser politicamente incorreto virou “cool”, todo mundo quer. Mas como em tudo na vida, a maioria que o tenta consegue apenas ser idiota. E a piada desse cidadão (que como afirmei em outra oportunidade, não me representa como nerd, muito menos como homem) não foi politicamente incorreta, mas apenas idiota. É considerado humor politicamente incorreto aquele que mexe em temas considerados perigosos, mas que estão repletos de fontes para diversos tipos de anedotas e similares. Uma piada inteligente (ainda que pesada) envolvendo racismo ou homofobia, antes de mais nada, ilustra a imbecilidade que constitui tais comportamentos – os saudosos Trapalhões e TV Pirata que o digam. Agora, alguém sem histórico psiquiátrico consegue ver algo de engraçado no tema estupro? Ao menos essa infeliz piada teve sua importância como documento histórico: ilustra muito bem a mentalidade atual do brasileiro.
É preciso esclarecer que não cabe aqui qualquer forma de generalização. Há mulheres dos mais diversos tipos de caráter, assim como ocorre com os homens. Sim, algumas não se dão ao respeito. Sim, há aquelas que não valem uma nota falsa de um real. Mas isso não é de forma alguma justificativa para agredi-las sexualmente. Se você, caro espécime Homo sapiens do sexo masculino pensa que sim, já começou errado. Da mesma forma que espancar um homossexual não o torna mais hétero, estuprar uma mulher de caráter duvidoso não o torna mais viril. Definitivamente, não é essa a questão.
Vendo as fotos da Slut Walk de São Paulo, o cartaz que mais me chamou a atenção foi um onde se lia “Respeite as mulheres, se for homem”. Simplesmente perfeito. As frases mais simples e diretas são mesmo as melhores. O homem brasileiro é ensinado desde cedo a ver a mulher como mero objeto de prazer e que gostar delas seria sinônimo de fraqueza. Macho que é macho não trata bem mulher – quem faz isso é otário, é assim que aprendemos. E nossa sociedade está cheia de machos. Mas nem todo aquele que nasce macho se torna homem. As mulheres que valem a pena teem toda a razão de reclamar: homem está mesmo em falta.


Obs: O título deste post faz referência à letra de “Mãe é Mãe”, composição de Cláudio Besserman Vianna (1962-2006), mais conhecido como Bussunda. Maiores detalhes a respeito da mesma podem ser vistos na sua biografia, escrita por Guilherme Fiuza.

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