sexta-feira, novembro 19, 2010

PREDADOR OU CARNICEIRO?

Reconstituição moderna de um Tyrannosaurus rex diante da sua próxima refeição: um hadrossauro.


Já dura mais de 90 anos um debate envolvendo o mais célebre dos dinossauros e um dos maiores carnívoros que já habitou este planeta: o Tyrannosaurus rex. Ocorre que existem duas correntes de paleontólogos que defendem concepções bem diferentes do comportamento desse animal. Há aqueles que tentam provar que ele foi um predador ativo; enquanto outro grupo (este com um número bem menor de adeptos) está certo de que ele foi apenas um necrófago, se alimentando exclusivamente, ou quase, de animais mortos. Nos últimos dias tal discussão voltou à midia com a descoberta feita por uma equipe de paleontólogos americanos e canadenses, liderada pelo pesquisador da Universidade Yale, Nick Longrich, apontando que o T. rex também teria hábitos canibais.
Antes de qualquer conclusão, contudo, é preciso que os paleobiólogos entrem num acordo sobre o que seria um carniceiro autêntico ou um predador autêntico. Muitos predadores podem devorar animais mortos ocasionalmente. E muitos animais tidos como carniceiros típicos, como os abutres, podem vir a matar movidos pela fome se estiverem diante de uma presa consideravelmente indefesa e frágil. Tal consenso ainda parece distante, o que só serve para complicar a discussão. Alguns zoólogos sugerem como solução para esse impasse a comparação entre as porcentagens de presas vivas e cadáveres ingeridos pela espécie em questão. Uma proposta válida, mas ainda em andamento. Há ainda os que consideram perda de tempo essa separação entre supostos predadores verdadeiros e necrófagos. De qualquer maneira, o bom e velho T. rex foi e ainda é responsável por uma das mais interessantes seqüências de argumentações e contra-argumentações da história da paleontologia e da ciência como um todo.
Quando o primeiro fóssil de um tiranossauro foi descoberto, em 1903 na América do Norte, a espécie foi logo considerada um feroz predador. Afinal, dentes enormes, pontiagudos e serrilhados; aliados às garras afiadas só podiam pertencer a um matador. Entretanto, assim como é extremamente difícil estabelecer o comportamento de um animal apenas pelo seu esqueleto, garras afiadas e grandes presas nem sempre são indicativos de comportamento 100% predatório. Basta olharmos para os ursos de hoje em dia: dotados de longos caninos e garras; mas que obtém apenas 10 a 15 % de sua alimentação abatendo outros animais, em sua maioria pequenos. A única exceção é o totalmente carnívoro urso polar (Ursus maritimus) que, por razões óbvias inerentes ao seu habitat, e capaz de abater até caribus, bois almiscarados jovens e pequenas baleias.
A idéia de que o T. rex não seria um predador, mas sim um gigantesco carniceiro, começou quando o paleontólogo canadense Lawrence Lambe, em 1917, passou a considerar o animal pesado demais para grandes deslocamentos ou movimentos mais ágeis. Além disso, ele inferiu que os dentes do T. rex , assim como de seus parentes menores como o Albertosaurus, não eram tão desgastados quanto se podia esperar de um caçador ativo. Os partidários do T. rex predador argumentavam que, mesmo não sendo um bicho tão rápido isso não o impediria de atacar de tocaia. De fato, muitos dos predadores atuais mais eficientes, como os felinos, atacam de tocaia por não serem capazes de correr por longas distâncias. Mesmo o veloz guepardo (Acinonyx jubatus) executa apenas um breve arranque em curta distância, chegando a ficar literalmente de língua de fora depois de terminada a corrida, tendo ou não abatido sua presa. Até duas décadas atrás ambas as opiniões não contavam com muitas evidências a seu favor. A maior parte das hipóteses era constituída por meras suposições, muitas vezes sem qualquer embasamento.
De um modo geral, os defensores do T. rex necrófago argumentam que, além do seu enorme peso, os longos dentes do animal não resistiriam a mordidas mais fortes. Há também aqueles que levam em consideração o tamanho reduzido dos braços nos representantes da família dos tiranossaurídeos como um empecilho à caça, uma vez que claramente não teriam muita serventia para segurar a presa, ao contrário do que ocorre com dinossauros carnívoros mais leves e ágeis como os alossaurídeos e os ceratossaurídeos. Muitos destes pesquisadores também citam o enorme tamanho da região do cérebro que seria responsável pelo sentido do olfato, bem como as igualmente grandes cavidades olfativas no crânio do T. rex, que só perdem proporcionalmente em tamanho para as do urubu de cabeça vermelha (Cathartes aura), o vertebrado de olfato mais aguçado em todo o planeta, capaz de farejar carne a quilômetros de distância ou enterrada a mais de um metro de profundidade. Para estes cientistas, tamanho desenvolvimento do olfato num carnívoro que apresentava os outros sentidos igualmente funcionais constituiria evidência de hábitos carniceiros.
Em 2003, os pesquisadores John Hutchinson e Mariano Garcia, da Universidade de Stanford, publicaram um trabalho onde constatariam que o Tyrannosaurus rex seria um animal incapaz de correr. Utilizando um programa de computador, compararam os movimentos do dinossauro carnívoro com o de uma galinha do mesmo tamanho, chegando à conclusão de que este seria extremamente lento.
Robert T. Bakker, paleontólogo do Museu Glenrock, em Wyoming, e famoso por ter sido o principal responsável pela reformulação da imagem dos dinossauros como animais ágeis, espertos e endotérmicos (também chamados de animais de "sangue quente", que mantém a temperatura do corpo constante e independente do ambiente externo, como as aves e os mamíferos) que teve início com o seu célebre livro "Dinosaur Heresies" (1986); classificou o experimento de Hutchinson e Garcia como "ridículo" e "amador". "É óbvio que uma galinha deste tamanho não conseguiria andar", ele comentou "Aliás, ela mal suportaria o próprio peso. E quem disse que um T. rex se parece com uma galinha?". Bakker tem razão em suas afirmações, uma vez que os conceitos da biofísica mostram que animais que aumentam de tamanho sem alterarem sua estrutura básica, especialmente dos membros, acabam desenvolvendo sérios problemas de locomoção. Membros em forma de coluna, mais grossos, constituem um pré-requisito para animais muito grandes conseguirem suportar o próprio peso e se mover em terra. Isso ocorre porque à medida que um objeto qualquer cresce em tamanho, sua superfície aumenta a razão do quadrado, enquanto sua massa aumenta a razão cúbica. Ou seja, o volume sempre aumenta em proporção maior que o comprimento. E, no caso específico dos animais, a força de sustentação cai pela metade na mesma proporção, tornando o corpo do espécime mais pesado para o próprio. Chamamos isso da regra do quadrado e do cubo. Por isso os animais terrestres muito pesados, como elefantes e grandes dinossauros apresentam uma anatomia geral muito parecida - corpo em forma de barril e membros colunares. Pela mesma razão, gigantes humanóides bípedes só são mesmo possíveis no nosso planeta dentro da ficção científica. Se um humanóide crescesse tanto, teria que virar quadrúpede ou ao menos um bípede horizontal (postura dos dinossauros bípedes) e desenvolver membros mais fortes para conseguir sair do lugar. Com base nisso, uma galinha do tamanho de um T. rex acabaria se parecendo muito pouco com uma galinha e muito mais com um T. rex, o que termina por colocar em xeque o experimento de Hutchinson e Garcia. Isso não é uma questão de opinião, mas sim biomecânica pura e simples.
A partir da década de 1990, os defensores de um T. rex predador pareceram deter argumentos em série. Baseando-se em dados biomecânicos, muitos paleontólogos como Gregory M. Erickson da Universidade da Flórida e Kenneth Carpenter do Museu de História Natural de Denver, concluíram que o T. rex na verdade possuía uma mordida robusta e muitos dos dentes perdidos por indivíduos da espécie apresentavam grande desgaste, provavelmente resultado de muitas mordidas, talvez ataques. Per Christiansen, da Universidade de Copenhague, demonstrou num estudo sobre o comprimento e a musculatura das pernas do T. rex, que este deveria alcançar uma velocidade de 40 km/h em plena corrida. Ou seja, mais rápido que qualquer outro animal de porte similar em seu habitat. Contudo, ficam-se devendo estimativas sobre agilidade e resistência; outras características essenciais a um predador.
Em outra ocasião, Carpenter juntamente com o paleontólogo Michael Smith, que na época trabalhava no Museu das Rochosas (EUA), estimaram que os braços "fraquinhos" do T. rex poderiam erguer um peso de até 180kg. A idéia corrente desde a década de 1990 é que os braços serviriam para ajudar o animal a levantar-se após o descanso, o que se encaixa perfeitamente no experimento de Carpenter e Smith. Segundo Bakker, a própria anatomia do T. rex dispensaria o uso dos braços durante o ataque, já que as mandíbulas podiam ser escancaradas num ângulo de cerca de 80 graus e o pescoço robusto unido a um tórax compacto eram demasiadamente fortes para permitir movimentos vigorosos com a grande cabeça em forma de marreta. Bakker explica que braços maiores tirariam o equilíbrio do animal, que possuía uma longa cauda como contrapeso. Este conjunto de características é exclusivo dos tiranossaurídeos.
Quanto à potência da sua mordida, experimentos recentes, realizados por uma equipe liderada por Longrich demonstraram que, ao contrário do que pensavam alguns partidários de um T. rex carniceiro, ela não só seria poderosa, como também o principal estrago que causava era por esmagamento. Alguns dinossauros carnívoros, inclusive os de grande porte, apresentam dentição especializada em cortar (caso do Spinosaurus) ou em arrancar grandes nacos de carne da vítima numa única mordida (caso do Acrocanthosaurus), matando-a por hemorragia. Esses experimentos revelaram que a mordida do T. rex era do tipo “quebra ossos”, efetuando simultaneamente dano por perfuração e trauma. Entretanto, lembremos que embora essa descoberta reforce um possível comportamento predatório, tal característica também seria de grande valia para um comedor de carniça, capaz de quebrar grandes ossos e romper a carne dura em estado de decomposição. Isso abre caminho para uma terceira via de argumentação, que veremos a seguir.
Outro fator que, segundo alguns paleontólogos, aponta para um comportamento predatório, é a maior incidência de vestígios de possíveis ataques do T. rex a hadrossauros (herbívoros bípedes, também chamados “dinossauros bicos-de-pato”), como o Edmontosaurus; em contraste com um número bem menor de ataques ao bem armado Triceratops e quase total ausência de marcas de mordidas similares nos blindados e espinhosos anquilossauros. Paralelamente, o estudo de coprólitos (fezes fósseis) de T. rex tem mostrado uma maior quantidade de ossos de hadrossauros ingeridos por esses animais. Talvez os fósseis sejam enganosos neste caso, o que sempre requer cautela. Mas segundo Carpenter, o registro desse habitat é rico o suficiente para permitir este tipo de conclusão. Segundo ele, se o T. rex fosse realmente um carniceiro, as marcas de mordidas seriam uniformes em todos os tipos de herbívoros daquela época. Bakker reforça, afirmando que tal comportamento é um indício claro de predação, já que os predadores não se arriscam com presas perigosas, caso haja outras mais fáceis de matar.
Em meio a este debate dicotômico, há paleontólogos que defendem uma terceira argumentação, a meu ver, diga-se de passagem, mais coerente: a de que o Tyrannosaurus rex seria um grande carnívoro oportunista, como um leão ou uma hiena, caçando e comendo cadáveres indistintamente, dependendo da oferta ambiente. De fato, muitas das conclusões vistas anteriormente convergem para esse cenário. Esclareço àqueles que por ventura se surpreenderam com o fato de eu citar leões e hienas como predadores equivalentes. Sabe-se hoje que as duas espécies ocupam o mesmo nicho ecológico, sendo inclusive concorrentes diretos; razão pela qual grandes leões machos matam hienas sempre que podem sem, no entanto, devora-las. Da mesma forma, grupos de hienas costumam atacar leões solitários ou desgarrados do bando. Trata-se de uma competição ferrenha por território e alimento. Vistas durante séculos como meras devoradoras dos despojos dos “reis”, as hienas são na verdade caçadoras formidáveis; com olfato apuradíssimo, capazes de enxergar no escuro e donas da mordida mais forte entre os mamíferos predadores. Muito embora não figurem entre os corredores mais velozes (alcançam no máximo 60 km/h, o que já é bem mais que qualquer corredor humano), elas conseguem manter uma marcha constante por vários quilômetros, alcançando invariavelmente a maioria das suas presas. Ocorre que tais fatos só foram possíveis de se verificar com o advento das filmagens e fotografias noturnas. Como tanto hienas quanto leões executam a maior parte das suas caçadas na calada da noite, durante esse período é que se observa a realidade dos seus hábitos alimentares. A imagem imortalizada de um pequeno grupo de leões devorando um herbívoro recém abatido e cercado por um grupo maior e impaciente de hienas pode ser muitas vezes enganosa; já que em muitos desses casos as hienas é que o abateram e os leões, se impondo pela força, o tomaram para si. Em suma, o leão é tão carniceiro quanto a hiena e esta, por sua vez, é tão caçadora quanto o leão. E se o grande felino de juba é o rei da savana, a feroz matriarca de uma matilha de hienas é certamente a sua rainha.
Além de novas descobertas, muitos achados antigos do T. rex e seus parentes têm sido revistos pelos especialistas nos últimos anos. Para se compreender o comportamento de um animal que se extinguiu milhões de anos antes do aparecimento da ciência, é necessário muito mais que estudar a sua anatomia. É preciso ater para detalhes, como marcas de ferimentos e desgaste nos dentes. É preciso também tentar reconstituir o ambiente onde ele teria vivido. E também estudar as outras espécies que conviveram com ele. Não é uma tarefa fácil e com certeza muitas perguntas surgirão. E algumas delas jamais terão resposta. Contudo, é preciso lembrar que os seres vivos não vivem isoladamente; as espécies interagem. E só compreendendo esta interação será possível saber algo sobre o comportamento de um animal pré-histórico. Desta maneira, talvez um dia se descubra do que e como o Tyrannosaurus rex se alimentava.


3 comentários:

* Andhora Silveira * disse...

É um pouco difícil acreditar que um animal do porte do T-rex fosse um animal meramente carniceiro como os urubus... mas as evidências para tal hipótese realmente fazem muito sentido.

É como você disse, Átila, é preciso muitos estudos para se afirmar com propriedade que os Tiranossauros eram carniceiros ou predadores.

Mas confesso que só consigo imaginar o T-rex como ele é retratado no filme Jurassic Park :)

Átila Oliveira disse...

Oi Andhora.
Realmente, imaginá-lo como um simples comedor de cadáveres com essa mordida requer muita boa vontade. Como disse no texto, pra mim faz muito mais sentido vê-lo como um grande carnívoro oportunista, comedor de carniça mas também perfeitamente capaz de caçar. Beijos.

Eric C. P. B. Ribeiro disse...

Comportamento predatório é complicado até com animais de hoje, quem dirá com grupos extintos há milhões de anos do qual seus parentes mais derivados são aves...
Vi uma vez um flagrante na Discovery que deixou muitos pesquisadores de queixo caido... um leão se alimentando de uma carcaça de baleia em estado avançadissimo de decomposição! Não há qualquer tipo de registro de tal comportamento em nenhuma literatura no mundo. Sendo assim, ainda há muito o que estudar, mesmo com isso jamais saberemos a verdade definitiva.

Abs!

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