sábado, novembro 20, 2010

100% MESTIÇOS



Aviso: Se o prezado leitor espera encontrar no texto a seguir alguma comemoração da data de hoje (Dia da Consciência Negra) ou declarações de como os indivíduos de pele mais escura ainda sofrem com o preconceito e a discriminação, aconselho a parar por aqui. Isso você achará em toneladas de outros sites e blogs. Minha abordagem será outra, que vai de encontro à hipocrisia vigente e que, justamente por isso, desagradará a muitos. A escolha é sua.

O Dia da Consciência Negra foi instituído pela Lei 5950/2003 para, mais do que lembrar a escravidão sofrida pelos povos africanos e seus descendentes no Brasil ou homenagear Zumbi dos Palmares, celebrar a contribuição desses mesmos povos na formação da identidade do povo brasileiro. Nada mais justo. Entretanto, alguns grupos, em nome de uma suposta igualdade racial, promovem atualmente em nosso país um novo tipo de racismo, muitas vezes velado e não assumido, baseado numa visão de total imunidade da população considerada negra ou, melhor dizendo sob a onda vigente do politicamente correto, afro-descendente – hoje em dia é um tanto perigoso chamar outro brasileiro de negro, a menos que você também se considere negro. Do jeito que a coisa vai, daqui a pouco até dizeres como “minha preta” (termo carinhoso cunhado pelo homem brasileiro para referir-se à mulher amada) serão considerados ofensas raciais.
Para aqueles que discordam desta minha visão, convido inicialmente para um exercício de imaginação dos mais simples. Acredito que todos conhecem a famosa legenda 100% NEGRO, presente em muitas camisetas e outros itens da vestimenta do brasileiro. Penso também que todos devem conhecer a revista Raça. Independente do quão estranho me parece cidadãos de pele mais clara que a minha ostentando a citada declaração numa camiseta e se autointitulando “negão”, pergunto-lhes qual seria a sua reação ao observarem um cidadão brasileiro de pele clara com uma camiseta com os dizeres: 100% BRANCO? E qual seria sua reação se surgisse hoje no mercado editorial uma revista de título Raça ou similar, onde só figurassem indivíduos de pele clara e que só abordasse a influencia dos povos europeus em nosso país? Reflitam bem sobre as suas respostas para que possamos continuar.
Se o leitor considerou ao menos por um momento que tais exemplos seriam formas de racismo, então chegamos ao ponto principal deste post. E inevitavelmente lanço a pergunta totalmente previsível, porém fatídica: por que 100% BRANCO é racismo e 100% NEGRO não é? Será que aqueles que pensaram desta maneira conseguiriam me responder? A grande verdade é que vivemos uma política racial de dois pesos e duas medidas, onde qualquer ato dirigido aos ditos afro-descendentes, dentro de uma legislação bem intencionada, mas de aplicação duvidosa, tende a caracterizar-se como crime de racismo, sem no entanto encontrarmos correspondência para com os índios, amarelos ou brancos. Em suma, parece que no Brasil o crime de racismo só existe quando a vítima em questão se define como negra. Não vi até hoje uma única notícia nos veículos de comunicação envolvendo um cidadão louro de olhos claros ou de feições asiáticas que foi vítima de racismo por parte de cidadãos de pele mais escura, coisa que todo mundo que viveu alguma parcela da sua vida na periferia sabe que acontece.
Antes que os mais exaltados e irracionais (pleonasmo proposital) possam me acusar de racismo, declaro que sou filho de típicos nordestinos, sendo descendente de europeus, índios e, obviamente, africanos. Basta olhar pra minha cara e a cor da minha pele para notar isso. Tanto que, descobri recentemente através de um amigo e colega de profissão, que na África do Sul eu não seria considerado branco, mas sim “colored”, da mesma forma que sou um típico “hispanic” ou “latino” para os norte-americanos. Mais: meu sobrenome de cristão novo e meu nariz avantajado são fortes indícios de que minha família teria um pé no Oriente Médio. Estaria cometendo uma imbecilidade em escala astronômica se defendesse qualquer forma de discriminação racial.
Pra começo de conversa, e agora falando como biólogo, não existem raças na espécie humana. Ocorre que as diferenças genéticas entre os principais tipos étnicos (africanos, aborígines australianos, índios americanos, asiáticos e caucasianos) são tão pequenas que não são suficientes para dividir o Homo sapiens em raças ou subespécies. Vale aqui ressaltar que há cerca de 40 mil anos nossa espécie sofreu um processo de extinção na Europa e Ásia que dizimou boa parte da sua variabilidade genética. O continente africano não foi afetado e o ser humano ainda não havia chegado às Américas. Como resultado, hoje a maior variabilidade genética na espécie humana encontra-se nos povos africanos nativos, ou seja, nos negros. Há mais diferenças entre os povos da África que entre um chinês e um polonês, por exemplo. Isso só confirma a imbecilidade de qualquer idéia racista ou racialista (termo mais polido, frequentemente utilizado por racistas enrustidos para defender a existência de raças humanas, a despeito de todas as evidencias em contrário).
E se a realidade dos fatos é dura para os racistas de plantão, também o é para os supostos defensores de uma igualdade racial no Brasil. Simplesmente porque aqui mais de 90% da população não é 100% coisa nenhuma. Somos uma grande nação de mestiços. Esse é o motivo pelo qual eu evito utilizar termos como negro ou branco, preferindo apenas pele mais clara ou mais escura, quando o assunto é terras brasilis. Pra mim faz muito mais sentido. Isso é tão doloroso para o neonazista encrenqueiro que sofreu lavagem cerebral quanto para o rapper de pele clara que se acha negro. E constitui a realidade pura e simples. Àqueles que duvidam, sugiro uma breve pesquisa na sua árvore genealógica. Fazendo isso, o cidadão que se acha 100% negro tem quase 100% de chance de se surpreender ao encontrar um ancestral colono europeu, da mesma maneira que um branquelo orgulhoso da sua origem nórdica tem imensas probabilidades de dar de cara com uma tataravó índia. Não se trata de previsão. São fatos. Pura estatística. E não adianta espernear. Enquanto não descobrirem uma maneira de voltarmos no tempo, não há como mudar nossa ancestralidade. Claro que há brancos e negros legítimos em nosso país, assim como amarelos, mas eles são em menor número que os próprios índios. A quase totalidade dos verdadeiros negros do Brasil encontra-se nas comunidades quilombolas. Digo isso, repito, do ponto de vista biológico, que a meu ver é o único válido quando o assunto é a diferença entre as etnias humanas. Um dos pontos positivos da atual política racial brasileira foi ter substituído qualquer critério de definição racial pela simples autodefinição. Tal abordagem já é utilizada pelo IBGE. Assim, quem se considera negro, por exemplo, será registrado no senso nacional como negro e ponto final, sempre deixando claro que o critério é exclusivamente o de autodefinição.
Mas mesmo uma idéia tão boa pode criar problemas quando aliada a procedimentos duvidosos, como os sistemas de cotas raciais adotados em alguns processos seletivos. Ganhou notoriedade nacional anos atrás o caso de dois gêmeos univitelinos que prestaram vestibular numa mesma universidade, que adotara o sistema de cotas para negros e pardos. Um dos irmãos declarou-se branco e o outro pardo, sendo que este último acabou aprovado justamente pelo sistema de cotas - lembrando que me refiro a gêmeos idênticos. E para não deixar dúvidas, os dois irmãos declararam em entrevista que realmente fizeram isso com a intenção de mostrar o quanto tal sistema é falho. Sem dúvida, uma inteligente manobra crítica. Por melhor que seja a sua intenção, qualquer sistema de cotas raciais termina por prejudicar indivíduos bem colocados que tiveram o azar de não se declararem parte das ditas minorias. E ainda chamam isso de igualdade.
Também vale lembrar a Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da cultura e história afro-brasileiras no Ensino Fundamental e Médio. Nenhum problema até aí. Mas e os índios? Por que não uma lei similar obrigando o ensino da cultura indígena? Sem falar que em muitos estados como São Paulo, o Dia da Consciência Negra é feriado, enquanto o Dia do Índio não é feriado em nenhum lugar do país. Se bem que, devido ao número exagerado de dias livres no Brasil, o mais correto seria que nenhuma das datas fosse feriado. No final das contas, dentro de um suposto programa de igualdade racial, os mais prejudicados são os primeiros habitantes do Brasil. Quem acha que não tem nenhuma influencia indígena é porque provavelmente não toma banho todos os dias. Os povos indígenas têm tanta influência na formação da nossa cultura quanto os africanos e, em alguns casos específicos, até mais. E, mais uma vez, chamam isso de igualdade.
A justificativa que alguns “defensores da igualdade racial” dão para tais procedimentos figura entre as maiores bobagens das quais eu já pude tomar conhecimento. Os mesmos afirmam que, em nome dos abusos sofridos no passado, os negros teriam mais direitos que as outras minorias. Resumindo: os negros seriam mais vítimas que as outras vítimas de discriminação racial. Mais uma vez, esqueceram-se dos índios. E engana-se quem acha que tal pensamento seria exclusividade de terras tupiniquins. Uma minoria da comunidade judaica defende que, como os judeus morreram em maior número que outros grupos (literalmente milhões), eles seriam as grandes vítimas do holocausto e por isso teriam mais direitos que os ciganos, homossexuais, deficientes e todos os demais exterminados pelo regime nazista. Também merece menção os mais paranóicos, que defendem que a noção de um Brasil composto em sua imensa maioria por mestiços seria uma conspiração da elite branca (sic!) para impedir que os negros conquistem seus direitos – para esses o próprio conceito de miscigenação parece inexistir. Nota-se que, da mesma forma que não se pode negar o racismo contra aqueles que se definem como negros, também é fato que boa parte desse racismo parte dos próprios. Se o caro leitor acha essas idéias o cúmulo, saiba que ainda há aqueles que defendem que não existe racismo contra os ditos brancos. Uma verdadeira pérola nesse sentido foi proferida esse ano pela ministra da Secretaria Especial de Política e Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Matilde Ribeiro, ao afirmar que um negro que insurge contra um branco fazendo uso da violência em razão da cor da sua pele não caracterizaria racismo. Mais uma vez, dois pesos e duas medidas.
Como se tudo isso não bastasse, a forma como a legislação anti-racismo brasileira se estrutura abre diversas brechas para indivíduos mal intencionados. Basta o sujeito em questão dizer que um possível comentário crítico tem motivação racista para ele virar vítima. Um bom exemplo nesse sentido pôde ser verificado na campanha eleitoral deste ano. Um certo candidato ao Senado (que, diga-se de passagem, possui histórico de violência contra a mulher e, como é típico desses tipos, só agride outros homens pelas costas), sentia-se perfeitamente confortável em atribuir todas as críticas sobre sua candidatura ao racismo e, quando abordado por repórteres e humoristas, além de recebê-los com tremenda arrogância não perdia tempo em jogar a população contra os mesmos.
Uma das características mais encantadoras do povo brasileiro é a sua diversidade. Fazemos parte de um imenso caldeirão multicultural e multiétnico sem equivalentes no planeta. Infelizmente, alguns indivíduos e grupos querem dividir essa nação, cuja maior riqueza nasceu justamente da mistura. Gente que se diz democrática e defensora da liberdade de expressão, mas que não tolera e por vezes até tenta censurar ou punir opiniões divergentes das suas – aposto um pirulito como muitos destes virão me atacar. A atual política racial brasileira não é de igualdade, mas sim de privilégios a um determinado grupo. Igualdade não é nem nunca foi sinônimo de imunidade. Para que a verdadeira igualdade possa existir, nenhum grupo deve ser considerado intocável. Torço para que muito em breve os brasileiros, nas suas mais diversas cores, possam realmente se ver como iguais; algo bem diferente do que está aí. Isso sim seria consciência. Mais que consciência exclusivamente negra, seria consciência humana. Se arrancarmos nossa pele, somos mesmo todos iguais, doa a quem doer. Aliás, a pele está na origem de muitos equívocos do ser humano com relação à sua autoimagem, tanto como espécie, quanto como grupo ou indivíduo. Mas isso já é assunto pra outro post.

Sugestões de leitura:
DIAMOND, Jared M, Armas, Germes e Aço, Record, 2001.
KAMEL, Ali, Não Somos Racistas, Nova Fronteira, 2006.
NARLOCH, Leandro, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, Leya Brasil, 2009.

7 comentários:

Anônimo disse...

Átila,
Texto magistral, além de corajoso. Parabenizo-o por tê-lo escrito, expressando indignações que passam pela cabeça de muitos de nós, mas que, às vezes, para evitar confrontos, evitamos externar.
Sempre me fiz essas mesmas perguntas... se o slogan "100% branco", além de mentiroso, seria considerado racista ao passo que "100% negro" não o é. Também não simpatizo com a política de cotas para negros em universidades. Dizem que é para dar oportunidade às camadas menos favorecidas da sociedade. Pois, para mim, soa como uma afirmação pura e simples de que negros seriam mais pobres e mais ignorantes do que os brancos. Isso não só é preconceituoso para com todos os negros como também é injusto para com milhares de brancos pobres e sem oportunidade de estudo. Dar chance aos pobres, SIM, nisso eu acredito! Mas a chance começa na educação básica, nos primeiros anos da escola, não com uma passada de mão na cabeça na hora do vestibular.
Ao lado do caso dos gêmeos que ilustra com excelência seus argumentos, vi uma vez, na TV, uma vestibulanda brasileira que se inscrevera na universidade como negra. Uma moça de cabelos crespos com o mesmíssimo tom de pele que eu tenho quando volto da praia. :-/
Não gosto de condescendência. Ao mesmo tempo em que não permito que a dirijam a mim, não acho útil ou aceitável que se aplique a outrem. Estudei em escola pública de periferia ao lado de gente de todas as cores (e não raças). Tivemos as mesmas chances.
Raça não só é conceito extremamente vago por si só, como se torna ainda mais absurdo num país como o nosso, onde a mistura é mais regra que exceção. Mania besta essa de separar, por medo, orgulho ou o que seja.
Em família, eu e minhas irmãs temos o hábito de chamar umas às outras de "minha nega" e "pretinha". Que é que tem?
Pode ser ingenuidade minha, mas ainda acredito em viver num mundo onde ninguém seja considerado "inferior" ou "cool" por ser branco, negro, mulher, homem, hétero ou homo. Somos humanos! Será que poderíamos, pra variar, ser considerados não como raças ou sexos, mas como indivíduos?
Beijão pra você, meu nego.

Átila Oliveira disse...

Oi Mila.
É um prazer enorme ter um comentário seu novamente aqui.
E confesso que, tais elogios, vindos de alguém que domina tão bem a arte da escrita chega a me encabular (e olha que eu sou bem difícil de encabular; sou sem vergonha mesmo... rs).
Faço minhas as tuas palavras. Cotas simplesmente para pobres fariam muito mais sentido que cotas para negros ou pardos. Mas parece que muita gente se sentiria ofendida com isso, né? Quanto a tal universitária supostamente negra da história relatada por ti, úma curiosidade: ela também tinha sardas como você? Só falta...
Beijão pra você também, minha nega. :)

azhiel disse...

Grande Átila! Complicado comentar algo depois deste belo artigo. Vc mais do que ninguém sabe que sou mestiço. Japones, negro e italiano. E meu filho ainda tem árabe no sangue. Passei uma vida escutando besteiras e piadinhas sobre ser amarelo, músicas com conotação sexual e por aí se vai. E dos dois lados. E muitos tb esquecem que a desculpa de um povo em querer tomar posse de terras que não são suas. E tb do extermínio total dos povos indígenas no Brasil. E do extermínio de uma cultura em favor de outra? Podemos passar o dia discutindo e não dará em nada. O que existe, não importa a cultura, é o egoísmo. O meu lado sempre foi o que mais sofreu, por isso tenho a desculpa de fazer o que quero e quando quero.

Átila Oliveira disse...

Pois é exatamente essa a raiz do problema meu amigo. O fato do meu lado ter teoricamente sofrido mais me dá o direito de fazer tudo que eu quiser. E só existe igualdade quanto esta me beneficiar. Triste, mas real.

Daniel d´Oliveira disse...

Texto corajoso e lúcido como poucos.

Átila Oliveira disse...

Obrigado, Daniel.
Seja bem vindo.

Juju disse...

Texto fascinante. Muito bom.

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