terça-feira, outubro 12, 2010

CORAÇÃO DE CRIANÇA



Aqueles que me conhecem sabem do meu interesse pelo pensamento e culturas orientais, notadamente a chinesa e a indiana. Mas a verdade é que foi pelo Zen-Budismo japonês que comecei, ainda na pré-adolescência (ou seja, antes mesmo da minha primeira aula de Kung Fu), quando tomei conhecimento de nomes como Taisen Deshimaru e D. T. Suzuki. Parece que realmente não optei por um caminho fácil. Naquela época, final da década de 1980, sem a internet globalizada de hoje eu, na angústia típica de quem tem no ato de falar um dos maiores prazeres da vida, não tinha com quem debater o assunto. Meu pai pouco podia fazer pra ajudar nesse sentido – mesmo sendo ele quem muitas vezes me providenciava os recursos financeiros para aquisição de tais obras, pois sempre nos incentivou no hábito da leitura. E para a maioria dos meus colegas tal tema estava bem longe da sua lista de interesses. Sim, havia os de família oriental (geralmente, claro, japonesa), mas esses eram por demais reservados sobre tais assuntos. Só quando pus os pés pela primeira vez num Kwoon que encontrei pessoas (incluindo da minha faixa etária) com o mesmo interesse pelas filosofias do Oriente.
O leitor deve estar agora se perguntando o que me motivou a escrever sobre filosofia oriental num blog de temática científica. Já aviso para ficarem tranqüilos, caros visitantes. Não estou mudando a temática do blog, muito menos quebrando minha palavra sobre o que deixei bem claro que abordaria por aqui. Ocorre que hoje comemoramos o Dia da Criança. E todos nós já fomos crianças. A proximidade dessa data sempre me traz a lembrança de uma frase do monge taoísta e confucionista Meng-Tzu (Mengzi, 372–289 a.C.), que reproduzo a seguir:

O maior homem do mundo é aquele que torna-se homem sem perder o seu coração de criança.”

Não tenho aqui a pretensão de dissecar tal sentença, buscando seus conceitos filosóficos, literários, semióticos etc. Mesmo porque, como sempre ocorre com as afirmações de pessoas realmente sábias, ela é de uma simplicidade sublime, não requerendo grandes malabarismos intelectuais para se fazer entender. Sua mensagem é absurdamente clara. Muitas coisas do mundo de hoje me preocupam. E uma delas é a ausência deste “coração de criança” na maior parte dos adultos. E isso nada tem a ver com maturidade. Há muitas pessoas imaturas que não possuem nada que identifique algo como um coração de criança. Na verdade, acredito que a verdadeira maturidade só se faz realmente presente quando inclui esse coração. Convido então vocês, prezados leitores, a acompanhar-me num breve passeio por esse coração, passando por ciência, pensamento oriental e minhas vivências pessoais. Longe de mim querer sugerir melhores maneiras de lidar com os pequenos. Não tenho qualificação nenhuma pra isso, mesmo porque ainda não sou (infelizmente) pai. Para isso existem os pedagogos e a Supernanny. Minha abordagem será outra.
Recentemente, motivado pelo convite de amigos de infância que há muito não via, fui visitar o lugar onde passei a maior parte de minha infância e toda a minha adolescência (nada menos que dezoito anos, mais da metade da minha vida), onde um deles ainda mora. Definitivamente, foi onde cresci, sob todos os aspectos. Fazia quase uma década que não passava por lá. O lugar mudou pouco. E o pouco que mudou foi pra melhor. Embora seja um garoto nascido e criado na cidade grande, eu praticamente nunca sai do mato. Primeiro porque sempre dava um jeito de viajar para algum, algo que se tornou recorrente depois dos meus dezesseis anos. E segundo porque onde cresci sempre teve mato. Fiquei muito feliz em ver com os meus próprios olhos que ele ainda existe. Verdade que agora estão bem mais agradáveis aos olhos dos mais urbanóides, repletos de jardins, babosas e arbustos. Mas continuam sendo os mesmos matagais onde eu brincava, caçava insetos e outros bichinhos (sem falar nas incontáveis picadas, inclusive de aranhas) e escorregava fazendo uso de um pedaço de papelão qualquer. Também foi onde adquiri a maior parte das minhas cicatrizes. Só fiquei um pouco chateado ao saber que o velho abacateiro que escalávamos para colher seus frutos, fora destruído por um raio durante uma das grandes tempestades dessa nossa São Paulo anos atrás, tendo que ser posteriormente removido. Descanse em paz, grande abacateiro. Digo sem medo de errar que vivi a melhor infância de todos os tempos, mesmo porque me refiro, mais uma vez, à década de 1980.
Que me perdoem aqueles que não gostam de crianças, mas não consigo entendê-los. Respeito sua postura, mas não consigo compreender. E olha que já me esforcei. É claro que existem alguns diabinhos que deixam qualquer um louco, a ponto de ninguém os querer por perto. Mas estes são a minoria. A maior parte das crianças é tão travessa quanto amorosa. Poucas coisas são tão gratificantes e tocantes quanto à demonstração de carinho por parte de uma criança pequena, ainda intocada pela teatralidade do mundo de gente grande. E, não por acaso, gente grande com coração de criança é muito bem recebida pelas mesmas. Uma característica presente em todas as crianças e que alguns adultos pareceram perder é a sua enorme curiosidade pelo mundo que a rodeia. Embora alguns afirmem ser este um traço típico dos meninos, ele está igualmente presente nas meninas. A questão é que numa sociedade patriarcal e repressora elas teem poucas oportunidades de exercê-lo. Se tem alguma dúvida, deixe uma garotinha livre num parque ou mesmo no quintal de uma casa e a observe. Você certamente se surpreenderá. Não raras vezes, tal característica adquire um aspecto realmente detetivesco. Aliás, esta é uma característica comum a todos os filhotes de mamífero. Afinal, somos antes de tudo animais, por mais que isso desagrade os adeptos do fanatismo religioso antropocêntrico. É um fato que esperneio nenhum pode mudar. Quem nunca observou um bebê cachorro ou gato sondando o ambiente a sua volta? Outro fato interessante, que muitos psicólogos e neurocientistas observaram, é que tal característica é fundamental para a sobrevivência do indivíduo. E em alguns grupos, como os primatas (do qual fazemos parte), torna-se ainda mais determinante se mantida após a sua independência. Prova disso é que os maiores artistas, cientistas e pensadores são, antes de tudo, grandes curiosos e atentos observadores. Portanto, Meng-Tzu, mesmo sem conhecer neurociência ou psicologia evolutiva, estava certo.
O arrebatamento da descoberta, uma conseqüência natural da curiosidade, é provavelmente a característica mais forte do coração de criança. De fato, cientistas com coração de criança apresentam a mesma empolgação com suas descobertas que as crianças que observam insetos num jardim pela primeira vez. Professores com coração de criança são os mais amados e respeitados. E grandes artistas (lembrando que, quando digo artistas, incluo os escritores e poetas) conseguem nos remeter a este arrebatamento. Essa é a melhor definição do que seria um coração de criança. Pena que muitos evitam tais experiências.
Também é observável nas crianças a sua abertura para o aprendizado. Crianças são geralmente muito dispostas a aprender coisas novas, outra decorrência da sua já mencionada curiosidade. Todo educador sabe que as crianças que dizem não gostar de ler ou odiar matemática não nasceram com estas aversões. Isso sempre é conseqüência de experiências traumáticas, via de regra, provocadas por um sistema educacional equivocado. Mesmo se levarmos em conta a crença de alguns em talentos e dons, em parte influenciados pelo conceito recente dos diferentes tipos de inteligência, isso continua válido. No meu caso, especificamente, sempre gostei de animais. Talvez isso seja uma afinidade natural. Talvez o primeiro livro que ganhei sobre o tema, aos sete anos de idade, tenha motivado todo um processo. Ou talvez ainda, seja a soma de tudo isso. A verdade é que para mim isso pouco importa. Eliminar essa paixão seria eliminar boa parte do que sou. E tenho plena consciência de que isso constitui um aprendizado que nunca chegará ao fim. Eu não me importo, pois o mesmo é deveras prazeroso. Infelizmente são poucos os adultos que mantém esta disposição, mesmo entre os considerados cultos. Falta de tempo é desculpa freqüente para se afirmar que aquilo que se aprendeu até tornar-se adulto é mais que o suficiente. Claro que, após uma personalidade formada, tal aprendizado torna-se mais criterioso. Não gostamos igualmente de todas as coisas. Temos preferências. O importante é o processo não estagnar. E nem vou adentrar na sensibilidade natural que toda criança tem com relação à música, para não me perder em conceitos que fogem ao do tema de hoje. Fica apenas como citação.
Uma última informação que pode ser interessante aos leitores que não são da área das ciências biológicas. A nossa espécie possui uma característica morfológica única, conhecida como neotenia (neo = novo, jovem; tenis = manter). Traduzindo: mantemos muitos caracteres na idade adulta que os outros grandes primatas apresentam apenas quando filhotes. Em comparação com os símios, nosso crânio é muito mais arredondado, nossa face é bem menor em relação à caixa craniana, nossas maxilas e dentes são muito menores (mesmo em comparação com espécies essencialmente vegetarianas, como o gorila), nossas suturas cranianas (a popular moleira) apresentam um fechamento muito mais tardio, possuímos muito menos pelo, entre outras particularidades anatômicas. Tudo isso é conseqüência de sermos pouco mais que fetos ao nascer. Os filhotes humanos são os menos desenvolvidos dentre os primatas, a ponto de nem conseguirem segurar na própria mãe. A maioria dos outros mamíferos nasce já com o crânio completamente ossificado e o cérebro quase que totalmente formado. Apenas para efeito de comparação, os sagüis nascem com cerca de 65 % do cérebro desenvolvido em relação ao seu tamanho final, os chimpanzés 40,5 % e os bebês humanos apenas 23 %. Por outro lado, um cérebro menos desenvolvido e que demora mais tempo para atingir a sua completa formação (cerca de quatro anos em comparação com um ano e meio do chimpanzé, nosso parente vivo mais próximo), é suscetível a um número muito maior de possibilidades de desenvolvimento, bem como de conexões neurais (as sinapses). Hoje é praticamente um consenso entre os especialistas que, se tivéssemos um cérebro mais desenvolvido ao nascer, dificilmente ele teria se tornado tão grande (em média 1.500 cm cúbicos, três vezes o volume do cérebro de um chimpanzé de porte equivalente), tão complexo e, principalmente, tão versátil. Já a origem da neotenia na nossa espécie estaria diretamente ligada ao bipedalismo: a mudança da posição da vagina da fêmea terminou por estreitar a abertura da pélvis, forçando o nascimento de filhotes menos formados. E alguns paleoantropólogos supõem que os primeiros hominídeos, ao estabelecerem um sistema social que valorizava o cuidado prolongado dos filhos, terminaram por favorecer indiretamente os bebês mais dependentes.
Com a criação da cultura e da sociedade, passamos a ignorar muito do nosso instinto. O que não significa que o mesmo deixou de existir. O primeiro a demonstrar isso foi Sigmund Freud (1856-1939), com o seu pioneirismo no estudo do inconsciente e por ter sido, inclusive, o primeiro a analisar uma criança – algo então impensável. Observa-se uma tendência nas culturas dominantes de silenciar os comportamentos instintivos, alguns destes, como vimos acima, tão presentes nos nossos primeiros anos de vida. A idéia de negar o lado animal da espécie humana, que se espalhou e dominou o Ocidente, definitivamente empobreceu a relação dela com o mundo e, em especial, com os outros seres. Felizmente, isso vem mudando nos últimos anos; um dos pontos positivos da globalização. De fato, somos seres racionais, mas nunca fomos, não somos, nem nunca seremos 100% raciocínio. Penso que, justamente por sermos racionais, é que podemos fazer melhor uso dos nossos aspectos instintivos. Tentar calá-los é pura perda de tempo, além de potencialmente danoso.
Sou, assumidamente, um adulto com coração de criança. Coração esse que só me trouxe benefícios. Às vezes me pego imaginando como o mundo seria muito mais chato se eu tivesse abandonado tudo que de alguma maneira me mantém ligado aos melhores momentos da minha infância; coisa que muitos dos ditos adultos maduros fazem. Penso que tal abandono por parte desses seja uma mera fuga, ou talvez medo de encarar a si mesmo. Pois, como não sou psicólogo, fico apenas no palpite, sem poder fazer uma avaliação concreta. O mais importante talvez seja saber que alguém com coração de criança, ou melhor, um curioso pelo mundo que o cerca, como disse sabiamente o naturalista britânico Gerald Durrell (1925-1995) no seu maravilhoso livro "O Naturalista Amador", jamais padecerá de um mal tão comum da sociedade moderna: o tédio. E isso ele escreveu em 1982.

4 comentários:

Isabella Bertelli disse...

Muito apropriada para a data,uma aproximação do "ser criança" à ciência, gostei!
Pois é, somos uma espécie com uma infância bastante prolongada, que ótimo! Quando nos tornamos bípedes a abertura da pélvis diminuiu, o que criou um problema para a passagem do bebê pelo estreito canal vaginal. A solução selecionada foi um crescimento exterior, para fora do útero. Quanto à neotenia, parece que na evolução humana houve um encaminhamento para a seleção de traços de comportamento (e, consequentemente, de traços físicos) mais dóceis. Somos macacos dóceis. Opa, uma afirmação complicada, qualquer um que leia jornal sabe que somos muito violentos, o que quero dizer é que nosso corpo não é preparado para um confronto físico como outros animais, como o chimpanzé, que tem muita força (um macho tem a força de cinco homens), caninos afiados, mordida potente, braços firmes, pescoço não tão vulnerável. (Darwin sugeriu que as armas artificiais substituíram as naturais, mas essa é outra história). Muitos fazem um paralelo com a evolução do cachorro, que é um lobo manso. O cachorro é como um filhote de lobo, e mantém essas características infantis por toda a vida.
É, a criança tem uma inclinação natural para aprender, para viver a cultura. É observadora, curiosa, faz testes e se arrisca. Temos instintos para fazer e viver a cultura.

Átila Oliveira disse...

Fico feliz que tenho gostado, Isabella. Opiniões de pessoas como você são o que me motiva a continuar. Quanto ao cachorro e o lobo, recentemente eles foram reclassificados como a mesma espécie, em virtude da não haver diferença genética entre eles. Ou seja, o cachorro é mesmo um lobo com comportamento juvenil. Beijos.

Bondgirlpatthy 007 disse...

Lindo texto! Incrível como sentimos a mesma coisa em relação à infância. Feliz Dia da Criança p/ vc q conserva sua infância dentro do seu lindo coração. Bjs

Átila Oliveira disse...

Obrigado, querida Patthy. E mantenha vc tb esse seu lindo coração de criança, que tanto encanta a todos nós. Beijos.

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